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segunda-feira, 25 de março de 2013

Quase

FG não sabia inglês, não. Dava lá suas acertadas numa palavra aqui, noutra ali. Cantarolava uns versos de língua enrolada com uma ou outra pronúncia e, mesmo sem saber o que dizia - e se dizia -, ele se divertia muito. Se ele se divertia, imagine a gente quando o surpreendia numa de suas cantorias. Isso me lembra até aquelas bandas de cidadezinha pequena em que os músicos cantavam um "inglês" que ninguém na banda entendia (e muito menos no salão), mas todo mundo se divertia. É o que importa.

Mas FG estava naquela semana um tanto encafifado com algumas coisas. Seu semblante era pesado, suas palavras era graves, seus ombros estava curvados e seu olhar voltado para baixo. Tinha algo sobre meu amigo, que ele ainda não tinha conseguido verbalizar. Naquele momento, me parece que uma luz começou a se acender em seu interior. Se interessara por uma música dos Beatles que, de alguma forma, tinha se incrustado na mente dele. Ele só lembrava a melodia. E aquele danado, bem diferente de mim, cantava que era uma beleza.

- Ever, cê conhece essa música, ó? - e solfejava a danada da música como se fosse um profissional. 

Eu o inveja por isso, e por tanta coisa boa que aquele amigo exalava. A música que ele havia cantarolado era "Don't let me down". Não só identifiquei para ele qual era a música, como a selecionei no meu telefone e a reproduzi para que ele ouvisse. Foi como se tivesse amordaçado o FG. Ele tomou o telefone das minhas mãos e ficou prestando atenção. Se eu estivesse de óculos teria visto com maior nitidez o que não posso afirmar aqui agora, mas tive a impressão de que lágrimas saíram de lá do fundo e vieram investigar o que havia no mundo de fora do meu amigo.

- Cara, que que esse refrão quer dizer?

- Rapaz, ao pé da letra, significa algo como 'não me decepcione', 'não me desaponte'.

- Vai entender... - disse meu amigo em tom misterioso.

Ele, que era bastante reservado, deixou que uma história tomasse suas palavras e viesse alcançar meu espírito, com toda a carga de sentimento que ele vivenciava naqueles dias.

- Ever - disse ele - pô, cara, teve um rapaz que a gente tava cuidando lá em casa, lembra? Moleque novo, que tava perdido por aí, expulso de casa pela família, vivendo à mercê da bandidagem, dormindo ao relento na rua. Meu!, com 20 anos ninguém merece estar nessa condição. Daí a gente levou ele pra, lembra, Ever? - Sua pergunta era do tipo pergunta retórica, daquelas cuja resposta não é necessário dar, e continuou sua narrativa - pois é: a gente acolheu o cara, deu pra ele todas as condições possíveis, desde um lar que o queria bem, até roupas novas, vaga na escola, trabalho. E tudo mais que uma pessoa de bem merece, né, Ever?

Como era mais uma pergunta retórica, não respondi. Perguntei logo o que tinha acontecido com o rapaz.

- Olha, meu, é de partir o coração da gente. Chegou um recado dele lá em casa: dizia que não ia voltar mais e que ia fazer coisa melhor. A gente ficou sem entender coisa nenhuma. Todo mundo doido, se pôs a procurar o menino. Perguntamos pra todo mundo: pro seu Zé, do bar; pra dona Patrícia, diretora da escola; pro seu Henrique, chefe dele na drogaria. Até que uns 3 dias depois, perguntamos até pro melhor amigo dele ali no outro bairro. Esse melhor amigo dele disse que tava vindo falar com a gente, porque tinha encontrado o moleque num estado de dar dó. Sujo, mais magro, careca; em companhia de uns caras mal encarados e reconhecidamente líderes do tráfico de drogas daquela região.

- Putz, FG! Que pena, rapaz!

- Pois é, Ever. Tô com o coração cortado. Igual o Brasil, na Copa de 86: tinha tudo pra ser campeão, mas não foi. Igual aquele amigo nosso que o filho se preparou pra caramba pra fazer a prova do vestibular e, quando chegou, o portão tinha acabado de fechar. O trânsito atrasou ele e ele perdeu uma oportunidade e tanto. Sei, não. Sei, não. Tem hora que a coisa está tão na nossa mão, que a gente folga e não segura ela direito. Aí, Ever, é igual água na mão: escorre entre os dedos. Cai e evapora.

Quis consolar me amigo, mas meus esforços resultaram todos vãos. Chegamos a vários chavões, a vários lugares comuns, como se era pra se assim, não podia ser diferente; é o destinho; Deus quis assim; deve ter um propósito nisso, que a gente não conhece. Esquenta, não: vocês fizeram tudo que podiam... e outros tantos. Mas nada, nada demovia a tristeza instalada no coração de FG. Ele não entendia como uma pessoa pode estar diante da vida e escolher a morte.

- Então é isso, Ever. Sempre lembrava daquela música dos Beatles cada vez que estava perto do moleque: "não me decepcione". Acho que isso era o destino me avisando de alguma coisa. Quantas vezes a gente quer dar amor a alguém; quantas vezes alguém quer dar amor à gente; quantas vezes um filho faz o oposto do que os pais orientaram; quantas vezes os pais não ouvem os gestos de amor dos filhos. Quantas e quantas vezes, entre o solo firme e o precipício a gente se joga no precipício, né, Ever? E tem hora que, mesmo estendendo a mão, ainda assim, o sujeito te escapa pelos dedos e vai se esborrachar no solo cheio de pedras pontudas.

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