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domingo, 31 de março de 2013

Movimentos vitais

Voltávamos de uma viagem longa, no último dia de um feriado de Páscoa. Nós e nossas respectivas namoradas tínhamos passado um tempo que há muito havíamos nos prometido: quatro dias de praia, de diversão, quatro dias de conversa gostosamente jogada fora, quatro dias que, apesar do cansaço, serviriam para renovar nossos ânimos e nos encher de alegria para continuar a batalha diária que cada um enfrenta.

Mas é mágica esta vida; se não mágica, ela é dona de uma tão poderosa capacidade de surpreender, que muitas vezes o rumo que a gente toma parece ter sido determinado mais por ela do que por nós mesmos. Aquele caminho de volta que fazíamos era o de sempre. Tão de sempre que, se eu ligasse o piloto automático, o carro chegaria sozinho,

Gostaria que tivesse sido assim naquele dia. De repente meus olhos começaram a avistar mais carros que o normal, e não os via mais ao longe, mas podia contemplar suas placas e até detalhes das pessoas que estavam dentro deles. Era o trânsito parando. Parava à minha frente, acumulavam-se carros à minha direita, à minha esquerda e atrás de mim. E, de uma hora pra outra, eu já não era mais dono dos meus movimentos. Não podia mais escolher o caminho a seguir.

Só eu estava acordado no carro até aquele momento. A falta de movimento fez um deles acordar; era a namorada de FG, perguntando numa voz mole e ainda de olhos meio fechados o que é que tinha acontecido. Ainda embebido em sono, FG puxou a cabeça dela para seu ombro, de modo que, sentindo-se mais acomodada, suspirou mais fundo e voltou a dormir. Desperto de seu sono, FG tomou a palavra:

- Sabe, Ever, tava aqui pensando. Porque nessas horas aqui, dá vontade de sair correndo ou de me resignar xingando meio mundo. Parado e meio cochilando, me lembrava de momentos em que eu tinha liberdade de movimento. Lembrava de momentos em que eu podia escolher para onde ir, como ir, quando ir. Lembrava de quando eu saltava no rio: subia no barranco, escolhia um ponto e dali pulava rio a dentro. Ou, me embrenhava pelo mato à procura de uma árvore cujo galho se estendesse para cima do rio: subia na árvore, da árvore no galho, do galho no rio: tchibummm! Ou simplesmente entrava no rio pela margem, como a coisa mais normal do mundo. Tempos bons...

Diante de sua pausa longa, eu disse:

- Pois eu me lembrava aqui de quando estava no mar, agora mesmo, há pouco tempo, antes de estar parado na estrada. No mar, a gente está dentro de uma imensidão, a gente está dentro daquilo que mais tem no nosso mundo: água. No mar, a gente pode estar em contato com a água, a terra e o ar ao mesmo tempo. E, numa viagem muito doida pensando que o sol é fogo constante, a gente poderia até afirmar que está em contato com os quatro elementos vitais: o fogo, a água, a terra e o ar.

- Verdade, Ever - continuou meu amigo já afastado do sono -. E no mar a gente acha que tá. Tá é nada. Tem hora que a gente tem vontade se sair nadando pra dentro daquele mundão de água salgada, mas não pode; tem hora que a gente que ficar parado na frente daquelas ondonas, mas não pode; mesmo as  ondas pequenas interferem no nosso movimento, alteram nosso comportamento. Acho que o mar domina as pessoas  fazendo a gente achar que ele é dominado. Talvez ele nos dê a sensação de liberdade determinando os nossos movimentos.

- Então, FG. Acho que é assim na vida, viu, rapaz?!

Entre suspiros e mudanças de posição das namoradas, ele me perguntou:

- Assim como, Ever?

- Sei lá, rapaz. Tem hora que umas ondas jogam a gente pra lá, pra cá; fazem a gente raspar o joelho na areia ou tomar um caldo nela, rolando por baixo d'água. Tem hora também que uma estrada que parece certa, que vai fluindo e permitindo a gente chegar em casa com tranquilidade, de repente para. E assim, parada, deixa a gente sem ação. Tem carro por todos os lados. Nem que se queira pegar uma via lateral isso é possível, até porque não é nosso caminho natural. Tem que tocar a vida em frente.

- Sei, não - surpreendeu-nos a todos a minha namorada - minha vontade é sair desse carro e ir andando a pé.

sábado, 30 de março de 2013

Sob controle

Era difícil ver FG impaciente. Fora de si, então, bravo feito um bicho, esbravejando como um sargento irritado, isso era quase impossível. Sempre muito controlado, ele parecia não ter sistema nervoso; parecia, sim, ter sistema "calmo". Achava que ele fosse o sujeito mais calmo do mundo, a pessoa mais calma que eu já tivesse visto em toda minha vida.

Mas, para minha total surpresa, tem um tio dele que chegou a recomendar que FG procurasse um spa, que tomasse ginseng, que procurasse dormir mais e que, pasme-se: que tentasse dormir mais para, quem sabe assim, conseguir se manter tranquilo, porque para ele tudo indicava que seu sobrinho andava esquentadinho, irritadiço. A continuar daquele jeito, não dava outra, poderia infartar.

FG me contou que esse tio dele jogava futebol de vez em quando. E que usava o futebol para, digamos, extravasar  para botar pra fora sua raiva supostamente contida, sua revolta, sua indignação. Teve um dia até (um domingo que o chamado dia do atleta de fim de semana) que o famoso tio achou ter exagerado em campo e batido muito nos adversários, desrespeitado, vilipendiado, xingado mesmo. E achou que foi tanto, que ao final do jogo, embebido em litros e litros de vergonha, foi pedir desculpas a um por um dos jogadores adversários. Quase unanimemente, segundo conta FG, os jogadores responderam que sequer haviam reparado nervosismo nele. Disseram mais: que ele, extremamente nervoso, é igualzinho a cada um deles dentro de sua mais perfeita tranquilidade.

Contou também da vez que, ao voltar do futebol, cansado e já distraído (meu Deus! imagine-se distraído um homem que é mais calmo que vento em lugar fechado) vinha dirigindo. Naturalmente, naquele estradão, que mais parecia um colchão para os pneus de seu carro e para os pneus de seu abdômen, acabou cedendo.     Dai, o resultado não podia ser outro: bateu, ainda que de leve, no carro de outro motorista. Assim que percebeu o choque, despertou, olhando para a cena, lamentou-se e disse:

- Caramba, vou perder o jogo de hoje da TV...

Não, não é de se exagerar, como o pessoal faz, dizendo que o tio do FG é como aquele baiano que deitado na rede com um dos pés no chão, avista ao longe uma tartaruga quase cega de tão velha vindo em sua direção e já toma logo providência: pergunta pra mãe se ela tem remédio contra mordida de tartaruga...

Se não se pode exagerar por um lado, por outro pode-se confirmar que ele adoeceu. Já avançado em idade, uma coisinha daqui foi agravando outra ali, um órgão comprometido aqui foi prejudicando outro ali, e assim foi até que perceberam que ele precisava de um médico. E assim foi: enfraqueceu tanto, que teve de ir ao hospital, onde ficou muito tempo até se recuperar. E pensa que ele estava preocupado? Nada.

Em uma das vezes, que foi quando o conheci ao acompanhar FG em uma visita ao querido tio, conversamos um pouco. Se bem que qualquer pouco com ele é muito, porque às vezes ele demora tanto para responder, que quando responde eu a gente já nem se lembra do que havia perguntado. Foi numa dessas perguntas que eu quis saber como é que ele realmente estava. Ele me respondeu, com toda calma do mundo:

- Olhe, nada que esteja sob controle.

sexta-feira, 29 de março de 2013

De rastros e lembranças

A discussão acalorada que havíamos tido outro dia no bar e que levou FG a dizer uma das coisas mais marcantes dos últimos tempos ainda ecoava na nossa cabeça, tal foi sua força, sua intensidade, sua contundência. O que ele disse sobre o silêncio do espaço onde tudo explode sem que se possamos ouvir o mínimo barulho ainda calava em cada um de nós.

Tomávamos um café no shopping, sentados em uma mesa dessas de muito pouco espaço que há nessas lojas estrangeiras de café. O ângulo em que estávamos sentados permitia-nos ver uma loja de perfumes, que deixam a gente com a impressão de estar no paraíso.

- Ever, como é bom passar na frente dessas lojas de perfume, cara. Olha, se só passar na frente delas já é ótimo, entrar, então, é uma tentação! Não dá nem vontade de sair. Ainda bem que daqui a pouco a gente vai lá comprar os presentes das mães. E é bem isso, né, Ever: pra mulher (e ainda mais pra mãe), na dúvida se deve comprar perfume.

Perfume é uma coisa boa mesmo para dar e para receber como presente. A meu ver, se, por um lado, ele é uma maneira de enfeitar o momento presente - porque funciona para o tempo presente como uma forma de enfeite, de adereço da pessoa; por outro lado, o uso de um perfume pode trazer efeitos benéficos que só serão colhidos muito adiante. Por exemplo, um coração já meio apaixonado pode acabar de se entregar a uma paixão, se estiver bem motivado pela fragrância que enreda o sujeito.

- Cara, ce deve ser muito doido, meu. É só um perfume, Ever! Que viagem é essa? Pra você parece que tudo tem que ser interpretado, meu! Dá licença, viu? Dá um tempo, meu! Até parece que você esquece daquele poeta que você me falou outro dia, como era? o... Roberto... alguma coisa... Roberto... como é?, caramba?, Roberto Carneiro, Caseiro, putz!, como é o nome dele?

- Sei, não, FG. Por esse nome aí, eu não sei quem é, não.

- Cê me decepciona, viu, Ever! Me decepciona! Aquele poeta, rapaz! Aquele, como é que você não lembra? Foi você que me falou dele! Eu tenho certeza!

- Mas o que foi que eu falei dele?

- Eita, meu Deus... o homem tá com amnésia... Pois você falou que esse poeta aí, o Roberto Carneiro, falava que não tinha mistério nenhum nas coisas, e que o único mistério das coisas é elas não terem mistério algum.

- Alberto Caeiro!

- Que seja, Ever, é tudo igual!

- ...

- E depois, vale mais saber a poesia do cara do que decorar o nome dele.

Tinha lá razão o meu amigo: só saber o nome do poeta sem saber o que ele diz é pouco produtivo.

- Mas, cê sabe, Ever, cê falou aí que os perfumes podem fazer melhorar o presente e o futuro, né? Mas eu acho sabe o que mais?

- Não FG, diga aí, por favor...

- Olha, eu acho que os perfumes levam a gente é pra o passado, porque quantas pessoas e quantos acontecimentos, ou quantas pessoas ligadas a quantos acontecimentos não estão ligadas por meio de um perfume? Pra mim, os perfumes são igual portas pras coisas do passado.

- Verdade, FG. Às vezes, só de uma pessoa passar com seu perfume característico, o rastro que aquele cheiro deixa funciona como escavadeira de sentimentos e sensações. O aroma liga a danada da escavadeira e começa a colocar pra fora coisas que estavam tão bem guardadas...

- Isso tem a ver com o espaço, viu, Ever?

- Sério? - perguntei verdadeiramente curioso.

- É. Sério. Do mesmo jeito que um feiche de luz, que a gente vê hoje no céu, é um rastro de luz de coisas que aconteceram há muito, muito tempo lá em cima; do mesmo modo, as coisas que vêm à tona na nossa memória hoje são só rastros de coisas que já aconteceram com a gente há bastante tempo.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Explosões silenciosas

Era véspera de feriado e a gente não tinha a menor preocupação de acordar cedo no dia seguinte. Nenhuma. Então naquela noite a gente conversava sobre qualquer coisa que quisesse saltar da nossa cabeça, cair na mesa e ser revirada por aquele grupo de desocupados, merecidamente desocupados, porque no nosso grupo... como se trabalha, viu?. Aos montes e muito responsavelmente. Dizem que numa situação dessas, 50% dos homens falam sobre cerveja, futebol e mulher. Outros 50% falam sobre mulher, futebol e cerveja. 

E era sobre esta última que fazíamos cair todos os nossos comentários, todas as  nossas considerações baseadas em nada e sem finalidade alguma, a não ser curtir o momento com os amigos. Porque pouca coisa a gente leva dessa vida, além das boas relações que temos com nossos familiares e nossos amigos. Altos discursos se fizeram ouvir naquela mesa de bar onde o cheiro de cerveja recendia das canecas cheias nas mesas e das garrafas cheias que o garçom desfilava como um equilibrista circense em suas bandejas. Os altos discursos que se ouviam ali contrastavam com o silêncio de FG.

O mais velho de nós - e a gente não o perdoava por isso, ao contrário, todos incentivávamos a exposição de sua senilidade, o aspecto ancião de sua figura, o tom profético de suas barbas de velho testamento - sustentava uma retórica de comparação. Segundo sua sapiência, homem que é homem tem que saber diferenciar uma Bohemia de uma Original, uma Brahma de uma Skol, uma Antártica de uma Bavária. E não abriu mão de citar as cervejas internacionais: desandou a comparar Erdinger, Stella Artois, Paulaner... e ainda teve a pachorra (ou, como diria o FG, teve a cachorra) de dizer que nenhuma cerveja se comparava à que ele havia tomado no México. Referia-se a uma que mais ou menos recentemente passou a ser comercializada no Brasil: a Sol.

De Sol aos assuntos terrenos, como mulher, e de mulher (tida como avião) de volta ao espaço e às explosões do Sol, o astro-rei, foi um pulo. Não um pulinho, mas um pulão daqueles que os astronautas dão quando não desfrutam da gravidade. Sem nenhum mililitro de coisa alguma para combustão, sem o menor mecanismo de propulsão, sem capacete e sem macacão, já meio tonto e cortando o discurso chato e involuntariamente exibicionista de nosso velhinho-mor, FG tomou a palavra.

- Cara, cês tão falando aí de espaço, de espaço, de espaço e tão fazendo muito barulho.

Segundos antes de a gente dizer que ele estava conseguindo ser mais chato que o nosso ancião, ele nos atravessou o olhar com uma segurança e uma contundência raramente vistas. Um gole longo e lento na cerveja, e ele apoiou a caneca na mesa para nos lançar as seguintes perguntas:

- Vocês sabiam que no espaço não tem barulho? Sabiam que lá em cima, tem um monte de explosão a todo momento? E mais: sabiam que tudo explode em silêncio?

Eu até me lembrava de uma frase do Pascal nesse sentido. Blaise Pascal teria dito: "o eterno silêncio do espaço me assusta". Mas achava, sinceramente, que era apenas uma frase poética, uma frase de efeito. Só que, ouvindo ali do FG, sob tantas cervejas e tanta seriedade do meu amigo, eu me calei. E fiz questão de continuar ouvindo a explicação do FG.

Mas outro colega, dada a sua juventude e natural ímpeto, não teve a mesma paciência que eu e já foi explicando que, na verdade, o espaço tem barulho, sim, só que numa frequência tão absurda que o ouvido humano não capta. Daí a impressão de silêncio.

FG não perdeu a deixa:

- Não importa: pra nós o espaço é silencioso.

Invocou-se o mais novinho da turma e, curtindo o efeito de tanta cerveja na cabeça, mandou logo um impensado "e daí, velho?"

- E daí? - respondeu FG à altura, com um tom de voz daqueles absolutamente incomodados. Como e daí, meu? Aposto que muita gente não consegue perceber que também é um universo à parte, que tem seus astros, seus asteroides, seus planetas, sua poeira cósmica. Não consegue perceber que dentro de si pode haver um monte de coisas explodindo, um monte de sentimentos que ficam calados, colados naquele vasto mundinho, dando sinais de uma existência que a maioria das pessoas sequer toma conhecimento...

quarta-feira, 27 de março de 2013

Sentimentos gêmeos

Neste ano fui agraciado com uma considerável quantidade de gêmeos como alunos. Em 50% das minhas salas deste ano há gêmeos. Engraçado também que em uma das salas, há cinco Vitor e uma Vitória. Com toda certeza e com todo meu gosto por trocadilhos, não posso deixar de dizer que se trata de uma sala "vitoriosa".

- Ah, não!!! Para! Para! Para... apelou, para! Pelo amor de Deus, Ever, que que é isso?

- Ô, FG pensa comigo: '-oso' quando está no final de uma palavra não significa plenitude, quer dizer, não significa alguma coisa cheia de? Assim: cheiroso é repleto de cheiro; gostoso é cheio de gosto. Logo, vitorioso é cheio de Vitor!

- Não, não. Para, Ever, que ce tá muito graçoso! Cheio de querer fazer graça...

Mas no fundo eu sei que ele gostava dos trocadilhos e se encantava com as possibilidades propiciadas pela linguagem. Dava muita risada... depois que entendia... porque às vezes, demorava pra captar. Muitas vezes, até arriscava fazer alguns, como no caso acima. Para minha surpresa, a atenção do meu amigo havia recaído mais dobre os gêmeos do que sobre os tantos Vitor que eu tinha como alunos. E me perguntou:

- Ever, será que é verdade mesmo que os gêmeos têm um negócio de sentir o que o outro sente? Será que quando um está triste, o outro também fica? Será que tem aqueles premonições de quando um vai sofrer alguma coisa? Como é, Ever, você já perguntou para esses gêmeos todos que você dá aula?

Acho que os gêmeos devem responder a uma pergunta como essa a cada pessoa nova que conhecem. Também perguntam se já se aproveitaram de uma situação para trocarem de lugar entre si (fazer prova, namorar etc.). Como eu já tinha conversado com os alunos sobre isso e sobre tantas outras coisas, foi fácil responder. Disse a FG que depende do grau de envolvimento que os irmãos têm entre si. Se for bastante intenso, os gêmeos costumam compartilhar alguns sentimentos.

Foi como se, ao fazer aquela revelação, meu amigo tivesse "apanhado à beira mar um táxi pra estação lunar". Foi esta a impressão que ele me deu ao assentir com a cabeça. Parecia concordar com o que dizia. Parecia concordar com algo que ele mesmo pensava. Daí me veio outra pérola, como é típico de FG:

- Cê tá dizendo, então, que para um gêmeo sentir o que o outro sente, depende menos do fato de serem gêmeos do que do fato de terem grande afinidade?

- Sim, senhor, foi isso que me disseram. Por quê, FG? Você acha o quê?

- Então, Ever, isso significa que talvez nem precise ser gêmeo para sentir um pouco do que um amigo da gente sente?

Como eu mesmo não tinha percebido que falei tal coisa, deixei que ele prosseguisse,,,

- Então, se é assim, mesmo sabendo que cada um de nós tem que viver seus próprios problemas, suas próprias angústias, quero dividir com meus amigos o quanto eles têm de bom, de vitória, de superação etc., mas não só isso: quero ter a possibilidade de dividir tristezas, preocupações, decepções etc.

- Mas dá, viu, FG? A sintonia das amizade faz isso mesmo. Sem que me digam nada, eu acabo percebendo quando meus amigos ou amigas estão bem ou não. Eles acabam deixando transparecer  pelo semblante, pelo gesto, por uma palavra, um tom de voz. E o mais curioso, FG, é que mesmo estando distantes, a gente consegue sentir pelo outro.

- Putz, Ever, bem que a gente podia simplesmente escolher as pessoas de quem a gente quisesse aliviar um pouco de dor e, pimba!, conseguir, não é? Saber, por quê? Porque tem dia que a gente é um caminhão de transporte grande e vazio. Tem dia que a gente é uma caixinha de fósforo carregando palitão de comida japonesa. É bem nessa hora que eu queria dividir com um amigo ou amiga bacana; uma pessoa vitoriosa,  uma pessoa pessoa, com certeza..

terça-feira, 26 de março de 2013

Urgência dos outros

Estava irritado o meu amigo naquele dia. Cara fechada, boca que só não ia mais pra frente por falta de elasticidade dos lábios. Parecia ter uma sobrancelha só, de tanto que uma se lançava contra a outra como se  quisessem se desafiar a ponto de uma expulsar a outra do rosto do meu camarada. Dos olhos parecia que sairiam faíscas se alguém tocasse naquele assunto que consumia todo o seu humor.

Fiquei na minha. Aguardando que ele saísse do seu transe. Para esse estado de espírito, os antigos usavam a palavra enfezado, para ilustrar justamente o estado em que se encontra a pessoa que está tão incomodada, que parece estar envolvida em fezes. Daí o nome enfezado. Se eu falasse isso pra ele, ele seria bem capaz de me ofender e me mandar para onde eu não quereria ir.

- Meu! - disse ele retornando à vida - Essas pessoas não têm o mínimo de respeito com a gente, viu?

- Que pessoas, FG? Do que você está falando, rapaz?

- Uma fulana hoje, ah cretina!!

Quando FG se referia assim às pessoas, era sinal de que a coisa tinha saído de seu controle. Porque ele normalmente é um sujeito tranquilo. Até quando está muito nervoso, toma o cuidado de, ao usar uma palavra forte demais, referir-se ao fato e não à pessoa. Continuou ele, esbravejando:

- Aquela incompetente do caramba ficou folgando o dia todo, com tititi pra cá, tititi pra lá, nhem nhem nhem daqui, nhem nhem nhem dali, e no fim do dia, bem no fim, me mandou uns relatórios pra eu ver. Coisa que ela tinha de ter mandado ainda de manhã. Aquela... - preferiu respirar e socar a mesa. De leve, mas socou, que eu vi. Nossa taça de chope até tremeu.

- E ainda veio me cobrar pra eu andar rápido, rapaz! Olha que atrevida!!! - claro que elogiou a mãe da moça...

- Que que você fez, então?

- Tive dúvida, não. Passei a mão no teclado e mandei logo um e-mail pra ela, com cópia pro supervisor. Falei do tempo, dos prazos, do tamanho dos relatórios, da importância de uma leitura atenta e responsável que eu faço questão de fazer. Falei de tudo, que era pra aquela... pra aquela (pensou, pensou e, sem escolher direito, continuou) pra aquela incapaz aprender a fazer o negócio certo!

Pensei comigo que FG estava coberto de razão. Tem gente que não tem a menor noção e é capaz de achar que o mundo gira em torno de si; pessoas que acham que tudo se encerra onde chega o nariz delas; gentinha incapaz de enxergar o outro - ou quando enxerga, é pra achar que o outro está a seu serviço. Nada, porém, que eu disse aqui, já contaminado pela indignação do meu amigo, resume melhor do que a frase que ele utilizou para encerrar o e-mail que mandou para aquela sua companheira de trabalho. Disse:

- Evite ser vítima da urgência para não envolver outras pessoas numa urgência que é só sua.


segunda-feira, 25 de março de 2013

Quase

FG não sabia inglês, não. Dava lá suas acertadas numa palavra aqui, noutra ali. Cantarolava uns versos de língua enrolada com uma ou outra pronúncia e, mesmo sem saber o que dizia - e se dizia -, ele se divertia muito. Se ele se divertia, imagine a gente quando o surpreendia numa de suas cantorias. Isso me lembra até aquelas bandas de cidadezinha pequena em que os músicos cantavam um "inglês" que ninguém na banda entendia (e muito menos no salão), mas todo mundo se divertia. É o que importa.

Mas FG estava naquela semana um tanto encafifado com algumas coisas. Seu semblante era pesado, suas palavras era graves, seus ombros estava curvados e seu olhar voltado para baixo. Tinha algo sobre meu amigo, que ele ainda não tinha conseguido verbalizar. Naquele momento, me parece que uma luz começou a se acender em seu interior. Se interessara por uma música dos Beatles que, de alguma forma, tinha se incrustado na mente dele. Ele só lembrava a melodia. E aquele danado, bem diferente de mim, cantava que era uma beleza.

- Ever, cê conhece essa música, ó? - e solfejava a danada da música como se fosse um profissional. 

Eu o inveja por isso, e por tanta coisa boa que aquele amigo exalava. A música que ele havia cantarolado era "Don't let me down". Não só identifiquei para ele qual era a música, como a selecionei no meu telefone e a reproduzi para que ele ouvisse. Foi como se tivesse amordaçado o FG. Ele tomou o telefone das minhas mãos e ficou prestando atenção. Se eu estivesse de óculos teria visto com maior nitidez o que não posso afirmar aqui agora, mas tive a impressão de que lágrimas saíram de lá do fundo e vieram investigar o que havia no mundo de fora do meu amigo.

- Cara, que que esse refrão quer dizer?

- Rapaz, ao pé da letra, significa algo como 'não me decepcione', 'não me desaponte'.

- Vai entender... - disse meu amigo em tom misterioso.

Ele, que era bastante reservado, deixou que uma história tomasse suas palavras e viesse alcançar meu espírito, com toda a carga de sentimento que ele vivenciava naqueles dias.

- Ever - disse ele - pô, cara, teve um rapaz que a gente tava cuidando lá em casa, lembra? Moleque novo, que tava perdido por aí, expulso de casa pela família, vivendo à mercê da bandidagem, dormindo ao relento na rua. Meu!, com 20 anos ninguém merece estar nessa condição. Daí a gente levou ele pra, lembra, Ever? - Sua pergunta era do tipo pergunta retórica, daquelas cuja resposta não é necessário dar, e continuou sua narrativa - pois é: a gente acolheu o cara, deu pra ele todas as condições possíveis, desde um lar que o queria bem, até roupas novas, vaga na escola, trabalho. E tudo mais que uma pessoa de bem merece, né, Ever?

Como era mais uma pergunta retórica, não respondi. Perguntei logo o que tinha acontecido com o rapaz.

- Olha, meu, é de partir o coração da gente. Chegou um recado dele lá em casa: dizia que não ia voltar mais e que ia fazer coisa melhor. A gente ficou sem entender coisa nenhuma. Todo mundo doido, se pôs a procurar o menino. Perguntamos pra todo mundo: pro seu Zé, do bar; pra dona Patrícia, diretora da escola; pro seu Henrique, chefe dele na drogaria. Até que uns 3 dias depois, perguntamos até pro melhor amigo dele ali no outro bairro. Esse melhor amigo dele disse que tava vindo falar com a gente, porque tinha encontrado o moleque num estado de dar dó. Sujo, mais magro, careca; em companhia de uns caras mal encarados e reconhecidamente líderes do tráfico de drogas daquela região.

- Putz, FG! Que pena, rapaz!

- Pois é, Ever. Tô com o coração cortado. Igual o Brasil, na Copa de 86: tinha tudo pra ser campeão, mas não foi. Igual aquele amigo nosso que o filho se preparou pra caramba pra fazer a prova do vestibular e, quando chegou, o portão tinha acabado de fechar. O trânsito atrasou ele e ele perdeu uma oportunidade e tanto. Sei, não. Sei, não. Tem hora que a coisa está tão na nossa mão, que a gente folga e não segura ela direito. Aí, Ever, é igual água na mão: escorre entre os dedos. Cai e evapora.

Quis consolar me amigo, mas meus esforços resultaram todos vãos. Chegamos a vários chavões, a vários lugares comuns, como se era pra se assim, não podia ser diferente; é o destinho; Deus quis assim; deve ter um propósito nisso, que a gente não conhece. Esquenta, não: vocês fizeram tudo que podiam... e outros tantos. Mas nada, nada demovia a tristeza instalada no coração de FG. Ele não entendia como uma pessoa pode estar diante da vida e escolher a morte.

- Então é isso, Ever. Sempre lembrava daquela música dos Beatles cada vez que estava perto do moleque: "não me decepcione". Acho que isso era o destino me avisando de alguma coisa. Quantas vezes a gente quer dar amor a alguém; quantas vezes alguém quer dar amor à gente; quantas vezes um filho faz o oposto do que os pais orientaram; quantas vezes os pais não ouvem os gestos de amor dos filhos. Quantas e quantas vezes, entre o solo firme e o precipício a gente se joga no precipício, né, Ever? E tem hora que, mesmo estendendo a mão, ainda assim, o sujeito te escapa pelos dedos e vai se esborrachar no solo cheio de pedras pontudas.

domingo, 24 de março de 2013

Mirantes e mutantes

Não pude resistir àquele cumprimento do FG. Vinha de longe, vinha das terras, mares e ares por onde ele tinha estado naqueles minutos de contemplação do nada, ou de contemplação do tudo. Não senti que naquele "E aí, Ever?" estava presente o meu amigo. Veio como uma frase gerada por um piloto automático de linguagem, daquelas coisas que a gente diz, por dizer, para cumprir um protocolo.

- Fala, FG! Levanta aí, meu! Me dá um abraço direito, me cumprimenta que nem gente, rapaz! - mal sabia ele que, ao pedir que mudasse de posição no espaço, eu tentava tirá-lo daquele momento de profunda introjeção e viesse à tona para falar de amenidades, de futebol, de mulher, de algum ato ridículo da política moderna, para falar mal de qualquer coisa, para contar piada, enfim: para atenuar o peso que a existência muitas vezes impõe impiedosamente em corações recalcados. Ele sorriu, não mais triste, se levantou quase pisando meu pé e me deu um abraço tão agradecido, que as pessoas ao lado ouviram com nitidez os dois tapas que os homens costumam dar nas costas uns dos outros quando se abraçam.

De volta ao seu lugar, fez um gesto indicando que eu me sentasse à mesa com ele. Aquela cena, pelo fato de estar num boteco tomando um café, me lembrou uma frase de Fernando Sabino no seu magistral "A última crônica": lanço um último olhar para fora de mim, onde estão os assuntos que merecem uma crônica". Eu sabia que dali viria mais coisa boa pra fazer a gente ter um papo legal naquele momento. Esse cara é muito legal mesmo. Na sua simplicidade, ele não tem a menor ideia do quanto me ensina. Talvez, mesmo, por não ter a preocupação de ensinar.

- "pra perceber que olhar só pra dentro é o maior desperdício" foi um trecho que nós dois captamos da música que tocava naquela hora no bar e quase fizemos o mesmo comentário a respeito. Engraçado isso, porque a gente se conhece há tanto tempo, que já tem uma certa sintonia sobre crenças, gostos etc. Foi ele que tomou a palavra, ansioso.

- Ever, que será olhar só pra dentro?

Veja só que coisa. Eu tinha pensado uma frase do Sabino que falava justamente sobre a importância de se olhar para fora. E lá vem FG me perguntar sobre olhar para dentro? Estava aí uma coisa legal: seja pra fora, seja pra dentro, tenho a impressão de que o tempo todo nós estamos mirando. Estamos com algo na nossa mira, na direção do nosso olhar. Miramos tanto, que às vezes fazemos coisas mirabolantes, às vezes fazemos coisas mirabiliosas. Acho que, em essência, somos seres mirantes.

- FG, sei não, rapaz. Nessa música aí, me parece que é algo ruim, porque impede que a gente olhe para fora e encontre a pessoa que pode vir a ser o amor da nossa vida.

- Sei lá, Ever. Não acho que seja tão ruim demais assim não, porque olhar pra dentro pode ser bacana pra gente olhar as besteiras feitas, o tanto de coisa boa conseguida, as coisas ruins também... parece que a gente sai pra fora da gente mesmo e olha pra dentro. É um negócio esquisito.

- Esquisito demais mesmo, mas acho que é importante. Eu acho que eu devia fazer mais. Ando precisando, sabia? Parece frescura,coisa de gente fresca, gente psicologizada, gente que quer se enxergar mais do que deveria. Mas, cara, o negócio é difícil. Difícil porque, não sei, a gente olha pra gente e acha um monte de coisas que não são a gente, ou que a gente pensa que não são. Não sei, também deve ter coisas que a gente não quer ver, e daí esconde. E coisas que a gente queria tanto ver, que até inventa.

- Verdade, Ever. Tem coisa que eu penso, que eu não sei se foi verdade ou se fui eu que inventei. Que doido isso! Então tem hora que eu olho pra trás, quer dizer, olho pra dentro, e não sei se o que enxergo sou eu ou não.

- Sabe, FG, parece que o mundo que está fora das nossas pálpebras se mistura com aquele que está por dentro delas quando a gente fecha os olhos. Parece que a gente traz as coisas pra dentro e elas passam a fazer parte da gente.

Aquilo que eu tinha acabado de falar nada mais era do que a reprodução de uma das muitas histórias que estão no livro "Cidades Invisíveis", de Ítalo Calvino, um livro que mudou minha vida em muitos aspectos. Mas aquilo que FG disse em resposta ao meu comentário mudou muito mais.

- Sei não, Ever. Cê falou desse negócio do que tá dentro e do que tá fora das prálbe...pebras..., como é?, pálpebras. Sabe o que eu acho? Que não é que as coisas de fora começam a ser o que a gente é por dentro, não. Acho que o que a gente é aqui dentro, Ever, e que faz a gente separar as pálpebras, é que vai transformando as coisas de fora.

sábado, 23 de março de 2013

Se os olhos escrevessem...

Daquela vez FG não falou uma palavra sequer. Também pudera: ele não me viu chegar. Ele não tinha a menor condição de perceber que eu estava ali. Talvez não estivesse percebendo nada ao seu redor. Provavelmente não estava vendo nem a si mesmo. Não naquele momento. Estava absorto, extraído deste nosso mundo material, físico, presente.

Olhos fixos no nada que se colocava na frente de tudo que o rodeava, meu amigo FG dialogava consigo próprio num silêncio que era de matar, um silêncio pior do que qualquer tortura, um silêncio que certamente rompia o maior número de decibéis, um silêncio ensurdecedor que pressionava seus tímpanos com cada batida do coração, com cada pulsar do sangue que deslizava por veias e artérias daquele corpo inerte. Vivo,  sim, mas não no momento presente.

Fisgado por uma música, feito peixe traído pela beleza de uma isca que se apresenta dançando diante dele, apoiada na limpidez da água que enfeita qualquer ser que convive com ela, FG parecia se ver diante da tela do cinema onde assistiu um filme absolutamente marcante, um filme que tinha uma música tão forte que era capaz de enredá-lo de tal forma, que não conseguia deixar de ouvir os acordes de cada instrumento, a melodia que eles formavam, a letra que se deitava em compassos firmes, regulares e pulsantes.

Talvez se lembrasse da pessoa que o acompanhava naquela sala. Quem sabe não tenha sido alguém com quem um dia sonhou construir a mais bela das coisas: a vida. De si, da pessoa e, por que não?, de outras pessoinhas a quem chamaria de filhos. Ou, por ventura, não estivesse se lembrando apenas daquilo que sequer chegou a existir? Não sei, não sei. Se os olhos descrevessem letras, se os olhos escrevessem, talvez eu pudesse dizer com certeza o que se passava na cabeça e no coração do meu tão querido FG. Tão falante e, naquela hora, tão sufocado por uma enxurrada de lembranças caladas que calavam todos os seus movimentos.

Que era aquilo, meu Deus? Por que mares e oceanos mergulhava meu amigo? Pensava talvez em um ente que estivesse deixando de ser? Lembrava ele, quem sabe?, de tantos momentos que vivera com um amigo que se via agora abraçado inexoravelmente pelo laço daquela que ceifa o ar dos pulmões dos viventes? Lembrando dos jogos, das piadas, das noitadas, dos ombros amigos recíprocos, das dificuldades, das vitórias agora emudecidas?

Sei não, mas não parecia ser lembrança alegre, não. O cara estava estático. Ele parecia estar numa encruzilhada que não o permitia ir nem vir. Diante de uma bifurcação, de um caminho maniqueísta que parecia exigir dele, como num pacto com o sobrenatural, que dissesse se tal coisa era boa ou ruim, é boa ou ruim, será boa ou ruim. Não, seu espírito não parecia pronto para dizer isso. Então, provavelmente por isso, ele dava a impressão de sofrer naquele momento.

Me aproximei de FG. Cheguei muito perto dele. Muito. Em outras épocas adolescentes eu o assustaria. Talvez desse um tapão na sua nuca. Ou o incomodasse com um peteleco na orelha. Mas, não. Nada disso. Respeitei e muito o momento daquele cara que há tantos anos me oferecia de sua amizade sincera. Esperei que me visse. Esperei. Esperei. Ele não só não me viu, como parecia mergulhar mais naquilo que parecia fazê-lo sofrer. Pousei minha mão em seu ombro, e ele lentamente virou seu olhar para mim. Demorou algumas frações de segundo para me reconhecer. Quando isso se deu, sorriu triste. Assentou o espírito:

- E aí, Ever?

sexta-feira, 22 de março de 2013

Nossas necessidades

- Meu! Dá uma olhada, cara! Dá uma olhada. Não. Uma só, vai?! Escolhe uma mesa qualquer desse bar, qualquer uma, não precisa nem ser as com mulher bonita. Tenta contar quantas estão segurando o celular e quantas não estão. Vai?! Conta? Pode ver: as que não estão com os celulares na mão, tão com o danado na mesa. Aproveita e olha um pouco mais pra ver quantas não olham pro celular e tocam nele procurando uma mensagem, um e-mail, um post, um twit ou um like.

- Ô, tá por dentro em FG?! - incentivou um amigo, dentre os mais novos que estavam ali com a gente. Mas é isso mesmo, meu amigo. O problema é que o que está na na mão daquelas mulheres é tanta coisa... é calculadora, agenda telefônica, agenda de compromisso, bloco de anotações, rádio, gravador, computador que roda Office e acessa as redes sociais, é calculadora, GPS, televisão, dicionário, é jogo, é biblioteca, audioteca, é videoteca. Na verdade, só de vez enquanto é que esses aparelhos funcionam como telefone.

Enquanto esse amigo se preparava para tomar do chope um gole da caneca que já estava segura  por ele no ar, FG tomou a palavra, porque julgou importante contar uma experiência pessoal pra ilustrar o que chama de dependência absurda que as pessoas têm do telefone celular. Antes, porém, fez questão de marcar seu território:

- Eu acho um desrespeito o que essas pessoas fazem - falou enquanto passava a mão sobre seu próprio celular na mesa. Mano! Mesmo estando a poucos metros de distância, as pessoas preferem mandar mensagem do que telefonar ou do que se aproximar de verdade. Pode ver, quando um carro para no farol. Se for uma família grande dentro desse carro, pelo menos metade das pessoas estará com o telefone à mão. Não, eu mesmo, ó: ...  - E ia meu amigo introduzir seu relato de experiência:

- Não, eu mesmo, inclusive aqui nesse bar, uma vez tava uma vontade danada de ir no banheiro e precisava ir, rapaz. Tinha tomado chope demais. Me levantei, rapaz, no limite do meu limite de suportar aquele aperto, e fui procurar um banheiro. Cara, era a conta certa de tempo: eram dois espaços em sintonia: o que faltava para minha bexiga explodir e o espaço que faltava para eu chegar no banheiro.

- Outro amigo, que acompanhava atentamente, como todos nós,  a narrativa de  FG, tomou a palavras  interveio para falar com um certo tom de inteligência aprisionada:

- Cara, nas horas de mais aperto, como essa que o FG está contando, o limite parece o máximo dos máximos pra gente aguentar justamente quando a nossa casa está próxima, não é?

Nisso, outro amigo já emendou histórias, por exemplo, da filha dele que já subia o elevador desatando o cinto, já entrava em casa desabotoando a calça e já entrava no banheiro com a roupa já a postos. - todo mundo riu, talvez por identificação, talvez pelo reconhecimento da graça da situação mesmo. Mas, logo a seguir, FG tomou a palavra e lembrou:

- Então, meu! Como eu tava contando - falou com um certo ar de irritação... Foi nesse bar aqui mesmo. Eu tava indo pro banheiro, mais rápido que o pensamento... já estava chegando lá, já com a mão na maçaneta, girando a dita cuja, quando percebi que uma mão estava na maçaneta, outra estava fechada, igual mão de cara pão-duro: daqueles que mergulha numa piscina com uma aspirina na mão, e ela chega seca, intacta do lado de lá. Era assim que estava uma das minhas mãos. Mas, peraí, pensei: cadê meu celular?

FG disse que tinha tirado a mão da maçaneta para apalpar os próprios bolsos à procura de algum vestígio do seu telefone celular. E nada. Pensou então que alguém poderia telefonar para ele ali, naquela hora, ou mandar uma mensagem importante. E se isso acontecesse e ele estivesse sem o celular? Mais: e se os outros amigos da mesa resolvessem vasculhar o telefone ali esquecido e fuçar até encontrar fotografias indevidas, cartões comprometedores e outras coisas? Não teve dúvidas o meu amigo. Continuou seu relato:

- Voltei correndo da porta do banheiro. Vim que vim, derrubando bandeja de garçon, tropeçando em quina de mesa deixando a perna mais roxa que hortênsias de Gramado; voltei como um relâmpago, um tiro. Capturei o ingrato do celular e deixei ele junto comigo, que é de onde nunca devia ter saido. E dalí, rapaz, dali, rumei de volta pro banheiro.

Nossa ansiedade era grande para saber o fim daquela história hilariante.

- Mano, nem liguei que eu tava num bar. Corri pro banheiro igualzinho à filha dele: desatando o cinto e abrindo a calça. Por sorte, meu, quando eu já tava sentido extravasar, cheguei na porta do banheiro e, graças a Deus, não tinha ninguém pra entrar comigo. Pensei, "putz! que alívio!!" Agora vai... poderia relaxar toda a gostosura que é desapertar-se de uma situação dessas. Mas quando eu levantei a cabeça procurando uma porta aberta... nada! um mictório vazio... nada. Aí, rapaz, o desespero foi grande.

A gente já estava morrendo de rir, quando ele completou.

- Rapaz! Tive dúvida não: já cheguei chegando num camarada que usava um dos mictórios e comecei botar pra fora aquele aguaceiro todo, que já ia batizando o chão, a perna do cara e tudo que estava pela frente. Lógico: o cara ficou tão puto comigo que me deu um empurrão, mas um empurrão tão forte que meu telefone foi mergulhar no poço de ureia que preenchia o mictório vizinho. Dali de onde eu tava, eu só pude ver os iconezinhos por baixo daquela superfície amarela. E pelo que vi, ninguém tinha ligado ou mandado mensagem. 

quinta-feira, 21 de março de 2013

Nossos medos

E foi o que aconteceu aquele dia. Não tinha, assim, bem visto, um gato preto. Mas, enquanto esperava ser atendido numa consulta, FG teve a oportunidade de ler um texto. A revista era sobre eventos culturais e trazia destaque para o filme "O Corvo", de Poe. Ao final da reportagem, havia um conto do autor: "O gato preto". Ficou tão impressionado, que tinha a impressão nítida de ter visto um.

A impressão não largou dele o dia todo. Parecia roçá-lo com seus bigodes felinos. Arranhá-lo com suas unhas afiadas. Muito viva a imagem do gato. Era tarde da noite quando voltava da faculdade. Do metrô à sua casa, dava pouco mais de um quilômetro. Já beirava à meia-noite e, sem dinheiro, voltava a pé. Mochila pesada nas costas, precisava se inclinar para compensar o peso e manter seu equilíbrio. Livro, caderno, lapiseira e caneta, garrafa de água, blusa de frio, tudo colaborava pra mochila parecer ter uma tonelada. 

Cada pedacinho de plástico ou de vidro que refletisse a luz dos carros, ainda que por um átimo de segundo, fazia-o lembrar do danado do gato. Aquele quilômetro parecia se transformar em decâmetro. Se fosse sexta-feira, 13, sei lá o que poderia acontecer com o FG: dormiria no metrô, ligaria pra alguém vir buscar, ou, na impossibilidade disso, "pernas-pra-que-te-quero" e desandaria a correr até de olhos fechados, se preciso fosse, mesmo que a mochila arrebentasse suas costas.

Não dava para fazer nada daquilo. Tinha de atravessar os mais de mil metros até sua casa. Encheu o peito de coragem, tirada sabe lá Deus de onde, e foi. Olhos fixos na frente como quem implora que o destino chegue já. Mas a danada da mochila o puxava contra o chão, parecendo um par de mãos e braços que diziam: demore, fique, sofra...

O que é a cabeça de um sujeito com medo? Não tinha graveto que ele pisasse, que não fosse confundido com o rabo do bendito gato. Somava aquilo com os vidros e plásticos que brilhavam, o pobre FG entrava em parafuso. O pior foi quando pisou em desses galhos, que se quebrou com o peso do meu amigo e sua mochila. O barulho que fez, aquele estalo no meio da escuridão e do silêncio que batia entre um carro e outro que passava, quase tirou-lhe os sentidos.. O cara resolveu correr, e correu tanto que tinha a impressão de estar mais rápido que o pouco vento que batia de vez em quando.

O coração do coitado parecia que ia sair pelas orelhas, pelo nariz, pela boca, por onde quer que pudesse passar, inteiro ou despedaçado. Batia mais forte no peito do que suas pernas no chão. Numa dessas passadas, mandou o pezão numa pequena poça d'água. As gotas que respingaram na canela da outra perna assustaram ainda mais meu pobre amigo - cansado, sem dinheiro, no escuro, com peso e com medo.

Uma sirene desandou a tocar e aí é que o bicho se desesperou. E agora? Será que era a polícia atrás dele suspeitando de ser um bandido em fuga? A dúvida às vezes trava as pessoas: se fosse a polícia e ele corresse mais, seria pior. Se não fosse a polícia e ele parasse, poderia se fazer de presa para qualquer coisa que pudesse estar vindo atrás dele - bandido, fantasma, cachorro doido, ou o infusado gato preto.

Pensou em deixar a mochila para trás. Era o que tinha de fazer, pois se já estava rápido com aqueles 15kg nas costas, imagine sem eles. Faltava pouco: uns 600m. A parte mais escura do trajeto. Apesar de correr boa parte dos passos com os olhos fechados, não tropeçou uma vez sequer. Aquela barulheira que ele fazia parecia ecoar no ar e o que ecoava lhe dava a impressão de serem passos de outra pessoa que estivesse correndo atrás dele. 

Quase desmaiou o coitado. Mas fez umas respirações fundas, mais fundas que seu medo e, com essa técnica, conseguiu escapar do desmaio. Sentiu-se um herói. Por alguns segundos. Enquanto os 600m se transformavam em 200m, 100m, sentindo-se já em casa e começando a se tranquilizar, foi atravessado pelos latidos firmes dos cachorros que avançavam contra ele. Não fosse o portão, por cujas grades ele vislumbrou os dentes afiados do bicho irado, ele teria, naquela hora, partido desta para melhor.

Desviou-se tanto com o susto que tomou, mas tanto, tanto, que quase foi parar no meio da rua, o que fez com que um carro que vinha acelerado acendesse o farol alto e buzinasse sem dó nem piedade para alertar o FG. Naquela hora, se viu cumprimentando São Pedro e já desistindo de chegar em casa. Chegava o Japão, mas não chegava sua casa.

Mas chegou, coitado, mais rápido do que chegaria se tivesse vindo de ônibus ou de táxi. Suava feito um banhista de sauna. Seus ombros pareciam estar na cintura, com o peso da mochila. Não sentiu dor porque, com a circulação dificultada, já tinha adormecido as espáduas. Sua respiração não diferenciava mais o que era inspirar ou expirar. Entrou em casa, nem sei como. Não se lembrava em que cômodo tinha largado a mochila nem o que fez até, quase literalmente, desmaiar no sofá de sua casa. 


terça-feira, 19 de março de 2013

Riscando o breu da noite

FG estava um filósofo saudoso naquele dia. Me contava com muita empolgação sobre sua crença pueril em discos voadores. Poucas vezes seu olhar ficou no meu quando se referia aos, então fantásticos, objetos voadores não identificados - os populares OVNIs. Seus olhos pareciam acompanhar um disco que já não estava mais ao alcance da vista.

- Ever, cê precisava ver. Sabe aquele antigo Círculo do Livro? Minha mãe era sócia. Sempre pedia pra ela comprar livro de OVNI. Eu lia aqueles livros tudo num final de semana. Os amigos vinham em casa me chamar pra jogar bola e eu tinha a coragem de negar. Logo eu, eu que não troco uma bola por nada. Eu, que já deixei de comer, pra ficar jogando. Pois eu negava. Não desgrudava do danado do livro de jeito nenhum. Ficava até pensando se aquela prisão que eu ficava no livro já não era um jeito de "abidução".

- Rapaz, acha mesmo que era abdução?

- É, Ever. Aprendi um monte de palavra lendo esses negócios aí.

- E hoje, FG? Ainda acredita?

- Sei não, viu? Sei não. Esse mundão é tão grande, que até assusta.Tem hora, sabe, Ever, que eu acho que a gente não vale é nada. Que a gente não sabe é nada. Que a gente é um monte de coisinha pequenininha no meio de um negoção que eu nem se que nome dar. Cê, vê, ó: tem sol que é tão grande, mas tão grande, que esse nosso sol parece uma areinha de praia. Então, eu fico pensando duas coisas.

- Fala, FG. Tá filósofo, hoje, hein!

- Para de me zoar, que o papo é sério, Ever. Então, meu. Eu acho que as coisas que a gente acha que são grande pra caramba, são uma coisinha de nada perto de outras, sabe?

FG me contava com tanta empolgação sua descoberta da dimensão do Universo, que era impossível não me envolver no que ele contava. Quis logo saber qual era a segunda das duas coisas que ele se pôs a pensar.

- Né duas não, Ever. Três. A segunda, sabe qual é? Tem gente que é besta demais e fica se achando. Se enxergasse o tamaninho ridículo dela no meio desse mundão, ia ver.

- Concordo com você, FG. Mas tem gente que fica se achando, porque precisa disso pra se sentir melhor. Não acho que pessoas assim estejam certas, mas elas são assim. Elas podem ser o contrário do que mostram. Dá até dó. E a terceira, FG?

- Rapaz, isso é doideira. Mas eu acho que cada um tem seu próprio disco voador. Cada um tem aquele pontinho brilhante no céu. Cada um tem seu traço de luz riscando breu da noite sem explicação. Cada um tem uma coisa que faz o olho brilhar. Pelo menos por um tempo. E tem de acreditar. Porque depois some.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Sempre nos falta algo

Uma figura esse FG. Ele sabe que eu estou ali na padaria, mais ou menos no mesmo horário, quase todo domingo, tomando um café, folheando algum jornal e vendo muita gente passar, vendo muito tempo passar. Tal não foi minha surpresa, quando me deparei com ele entrando ofegante na padaria e quase atropelando um velhinho de boina que, com o susto, deixou cair seus pães.

Desculpou-se o meu amigo. Gentil, fez questão de comprar outros pães e repor a perda que provocara. O velhinho pegou o pacote novo de pães do jeito que recebeu. E se mandou enraivecido. Resolvido o incidente, FG veio até mim, me abraçou, deu risada dos pães derrubados e, depois de algumas perguntas pró-forma, cuja resposta não interessava, fez um esforço para se lembrar de algo. Grande esforço, por sinal, dado o tamanho do ponto de interrogação que se desenhou em seu rosto. Era tanto, que parecia estar dividindo 268 por 13. E sem calculadora. De repente, lembrou-se e, como mágica, toda aquela interrogação caiu, como os pães. Jogou a interrogação para mim:

- Ever (era assim que ele me chamava), tava tentando lembrar uma palavra pra te perguntar já faz tempo, sabe? Que negócio significa a palavra fugaz?

- Ô, meu! De onde vem essa dúvida? - eu quis saber.

- Sei lá, cara. Com o tempo, aprendi a gostar de música e ficar olhando a letra. Daí, tava ouvindo uma música no rádio. Gostei. O radialista falou que chamava fugaz. Gravei o nome pra baixar na net, né? Depois veio outra música: Lulu Santos. E o radialista: fugaz. Já achei que o cara tinha se embananado todo porque deu o mesmo nome pra duas músicas diferentes. Aí, rapaz, quando fui baixar as duas na net em casa, vi que uma era com dois L e S no final, e a outra (que doideira) era sem L, e com Z no final. Fiquei cabreiro. Não pensei duas vezes: domingão eu tiro essa dúvida.

- Você tem bom gosto, FG. Seguinte: a gente fala que alguma coisa é fugaz quando ela dura pouco. Acaba rápido. - Mandei uma comparação pra facilitar -. Igual a vida do pãozinho que você derrubou aqui. Durou menos do que deveria. Ele teve uma vida fugaz.

A dúvida ia crescendo no rosto dele. Senti isso principalmente quando ele desviou seu olhar do meu, e o fez passar pela parede da padaria, atingir a parte externa, e dali se perder na imensidão do céu. Mas, aos poucos, sua consciência voltou. E assim que voltou, ele expressou sua conclusão:

- Ahnnn...

- Ahnnn o quê, rapaz?

- É igual quando eu gostava pra caramba daquele carro?

Aí fui eu quem disse seu característico "Ahnnn"?

- Se liga. Eu era vidrado no carro. Fiz um esforço danado pra comprar o bicho. Quase chorei de emoção quando saí com ele da loja. Morria de orgulho das pessoas me verem com ele. Adorava entrar nele, dirigir até cansar. Ia até devagarzinho pros lugares, só pra poder estar mais tempo nele, curtir ele e tal. Nem que fosse pro lugar mais perto de casa, eu ia com ele. Deixava ele sempre limpinho. Comprava presente pra ele: cera, gasosa aditivada, cheirinho, adesivo e o caramba. Aí, não passou três meses e eu já não via mais graça no carro. É isso, Ever?

- É isso, FG! - reforcei -. Lembra quando você comprou seu DVD? Você me falou que ia passar todo domingo vendo filme, show, documentário etc. Alugava um filme atrás do outro. Depois passou a comprar os filmes. E estava lá, firme com o DVD. Se divertiu um tanto com ele. Mas, logo depois de alguns meses, aposentou o coitado, para assistir as suas coisas pelo computador, on line.

- Ah, Ever. Mas o banco do carro começou a me dar dor nas costas. E os filmes no computador, eu não precisava sair de casa.

- Não, não. Não to te julgando, não, rapaz. So to te explicando que sua paixão pelo carro e sua paixão pelo DVD foram um bom exemplo do que é fugaz.

Antes que ele pudesse replicar o que eu falei, seus olhos se depararam com o velhinho dos pães caídos entrando na padaria. Ele tinha cara de poucos amigos. Com uma frase lacônica, ele encerrou nossa conversa:

- Ó! Tava faltando um pão!

FG e suas histórias

Sabe dessas horas em que os camaradas estão já às tantas no bar, que já não medem mais o que falam e muito menos o que deixam de falar? Ao lado desses sempre tem um de orelha comprida, perdendo a conta dos chopes tomados, das caipirinhas bebidas, das músicas dançadas e, sobretudo, das histórias ouvidas. Ainda que não tenham sido contadas para ele. Mas, olha, mesmo passado o efeito do álcool, pelo menos uma das muitas histórias fica-lhe gravada na mente assim como o gosto pelo bar fica em seu espírito.

Naturalmente aquelas histórias ouvidas se misturam às suas próprias, aos seu sonhos, à sua imaginação, aos seus desejos, às suas necessidades. Ficam gravadas nele como tijolos que vão sendo sobrepostos desde o alicerce da casa até a laje que recebe o sol e a chuva, o orvalho e o sereno com a mesma disposição de quem recebe um beijo há muito esperado. São tijolos que formam o que ele é. E ele é apenas mais um. Mais um que ouve histórias. Mais um que conta histórias.

Tenho um amigo assim. O cara tem o dom de sair do trabalho toda sexta-feira, atravessar a cidade só pra vir ao seu bar predileto, encontrar seus amigos, beber, conversar e deixar o corpo se desfazer do enfado que foi a semana, da carga imensa de trabalho que ele enfrentou, dos dissabores que experimentou. Ou, senão, para comemorar as metas atingidas, a eficiência de suas ações, os elogios recebidos e as boas relações estabelecidas.

Eu estava tomando um café na padaria, como faço em toda manhã de domingo, folheando o jornal e vendo as pessoas passarem com suas caras de sono, seus cabelos ainda úmidos, sua roupa de corrida, seu terno para a missa, sua sacola de feira. De repente, do outro lado da rua, passou esse meu amigo - quase um Forest Gump, de tanta história que conta - e entrou na padaria. Me deu um abraço, perguntou se eu estava bem e se sentou ao meu lado para me ouvir e para me falar.

Esse personagem, que nasce hoje, vai contar muitas histórias aqui no blog. Por isso mesmo, vou chamá-lo FG - seja por referência ao Forest Gump, seja por referência à música (aliás, músicas que sempre introduziram meus textos aqui), pois FG são cifras para as notas Fá e Sol. Seja bem vindo, FG.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Cabeça de menino

Não me lembro de já ter citado Roberto Ribeiro aqui, mas alguns versos dele me vêm à mente agora. "Todo menino é um rei. Eu também já fui rei. Mas quá! Despertei". Penso isso várias vezes quando estou diante dos meus alunos. Não os da graduação nem da pós-graduação, mas os do Ensino Fundamental, meus alunos de 8º e 9º ano - mais especialmente os primeiros.

Não são poucas as vezes em que tenho de parar a explicação que faço em aula para trazer um de volta à atenção, porque está distraído... com aquela postura de quem está olhando fixamente para algo, mas não está vendo. Ou, senão, quando está distraído com alguma coisa (um aparelho eletrônico), um barulho exterior, uma conversa de algum colega, ou qualquer outra coisa.

Quem me conhece sabe que muito, mas muito, muito dificilmente mesmo eu perco a paciência. Muito raramente eu perco as estribeiras e falo o que não devo, ou falo o que devo em um tom absolutamente inadequado. Na hora que sinto o sangue subir, eu o refreio com a respiração, com o desvio do olhar e com o ajuste dos pensamentos. Penso naquilo que eu gostaria de falar e naquilo que o professor deveria falar. Opto pelo segundo. Às vezes, escapa o primeiro. Aí me arrependo e eu mesmo peço desculpas publicamente.

Claro, aí me vem a música do Roberto Ribeiro: "todo menino é um rei, eu também já fui rei". Nesta hora, fico pensando que há 30 anos, quando eu não tinha a maturidade de hoje, minha atenção também sofria com todos os estímulos, eu tinha dificuldades em me concentrar, eu também enxergava o mundo a partir de mim... enfim, eu era adolescente. Daí hoje, com a cabeça de hoje lembrando da de ontem, entendo melhor o aluno, o adolescente que está diante de mim todos os dias.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Quando a crítica não cabe

É muito fácil ser aquilo que se chama de "engenheiro de obra pronta". Engenheiro de obra pronta é aquele que, com toda pompa e circunstância, se coloca diante de uma obra já concluída e não poupa nenhum esforço, não mede sacrifício nem demonstra qualquer pudor ao apresentar suas críticas. Não sente o menor incômodo em apontar defeitos na disposição dos cômodos, nas instalações, na posição das portas e janelas, enfim, em tudo aquilo que está posto como resultado de imensos esforços que não contaram com a ajuda daquele que critica.

Seu intuito não é contribuir, não é promover melhoras nem agregar o que quer que seja de positivo na obra já pronta. Antes, seu intuito é mostrar-se. Sua intenção é promover-se. O resultado de sua ação é um incômodo absolutamente desnecessário, é o despertar de um sentimento ao mesmo tempo de indiferença cega, de indignação perplexa. Fisicamente, tais sentimentos  se veem nas pequenas rugas que se formam no canto dos olhos, no riso quase invisível no canto da boca e no punho que se cerra no canto do nada.

São assim aquelas mulheres ou aqueles maridos que reclamam da maneira como determinada peça de roupa tenha sido colocada no varal, ou como determinada louça foi colocada no escorredor, ou como determinado produto foi comprado de uma marca e não de outra, ou ainda como determinado caminho foi escolhido para certo trajeto em detrimento de outro. Tudo isso, claro, sem ter estendido a roupa, lavado a louça, feito a compra ou se disposto a traçar uma rota e dirigir.

Também são assim aqueles que, mesmo diante de tantas coisas boas em um passeio, uma viagem; em uma reunião, uma aula; um livro, um material didático; uma festa, um encontro... pessoas que insistem em ressaltar o ruim em detrimento de tudo de bom que há. Gente mal amada, de espírito descontente, de palavra amarga, de existência doente. Gente cuja vida precisa de uma reengenharia.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Os formandos e o paraninfo

"E eu quero é que este canto, torto feito faca, corte a carne de vocês" é um verso de Belchior que mostra o quanto é poderosa a palavra. Independentemente de ela ser escrita, dita, cantada ou por qualquer modalidade de expressão, a linguagem é um instrumento poderosíssimo em nossas mãos.

Muitíssimo honrado pelo convite que meus alunos de Letras me fizeram, fui ao Tuca hoje participar da colação de grau daquela turma para a qual eu já não dava aula há dois anos. Eles me escolheram como paraninfo e, como tal, durante a cerimônia é obrigatório produzir um discurso. Entre o emotivo e o racional, o escrito e o oral, o discurso precisa ser significativo para os alunos, naquele momento tão importante para a vida de cada um deles.

Logo no início do discurso, cantei a música "A palo seco", de Belchior. Nem acreditei ainda que cantei em público. No Tuca. Numa cerimônia de colação de grau. Para mim, o máximo!! Apesar de quebrar o protocolo, pois se sabe claramente que em discurso de formatura não se canta, procurei deixar aos meus alunos a importância do reconhecimento da linguagem com um duplo sentido: de fazer o bem, de fazer o mal.

Em certo trecho, eu disse: "Quero que vocês, hoje formados, possam tirar dos olhos a névoa que os impede de ver com clareza. Que tirem dos ouvidos o bloqueio que os impede de ouvir com nitidez. Que tirem do coração a pedra que os impede de pulsar para a vida que a linguagem é capaz de curar. Minha palavra hoje, que eu canto desesperadamente em Português, vem como um canto torto que eu espero que corte a carne de vocês e os liberte para a incomensurável alegria de produzir a vida por meio da palavra que usamos doante de nossos alunos.

terça-feira, 12 de março de 2013

Falar o quê?

"Eu presto atenção ao que eles dizem, mas eles não dizem nada" é um verso de uma das muitas boas músicas compostas por Humberto Gessinger, do grupo Engenheiros do Havaí. Já o citei aqui e citarei tantas vezes quantas forem necessárias para dar o input, o start ao pensamento que eu pretender desenvolver. As músicas sempre me dizem algo, sempre me trazem uma informação nova, muito embora muitas delas sejam antigas - como até é o caso dessa do Engenheiros. São músicas que dizem.

Uma das coisas mais importantes nesse nosso mundo de hoje é ter o que dizer. Naturalmente isso implica uma série de outras condições: para quem dizer, onde dizer, com que dizer, como dizer e para quê. Essas condições, somadas a outras, de natureza política e cultural, devem ser levadas em consideração quando se tem a responsabilidade pela palavra, quando se tem diante de si um conjunto de ouvidos e corações dispostos a investir tempo ouvindo. É preciso ter o que dizer e fazê-lo bem.

Por isso, eu estranho muito quando a opção das pessoas, sobretudo, daquelas que se encontram em posição sociocultural privilegiada, é falar de qualquer modo, procurando mais quebrar do que unir, mais impressionar do que efetivamente convencer e persuadir, mais chocar violentamente a superfície do que tocar profundamente a alma.

"Será que eu falei o que ninguém ouvia? Será que eu escutei o que ninguém dizia?", "será que eu falei o que ninguém dizia? Será que eu escutei o que ninguém ouvia?" - cantavam os Titãs há uns bons anos. É bem provável que eu tenha entendido a meu jeito o que alguém se esforçou por me dizer. É bem provável que eu tenha falado coisas que ninguém ouviu. Mas poucas vezes eu disse algo que ferisse as condições do poder-dizer; menos vezes ainda eu disse algo em que eu não tenha pensado em dizer e tenha desejado dizer. Isso porque sei que as pessoas prestam atenção ao que eu digo. Portanto, não quero dizer nada.

segunda-feira, 11 de março de 2013

De novo outra vez

O poeta mineiro, itabirano, que já citei aqui, Drummond, em um de seus mais conhecidos poemas, afirmou que "tinha uma pedra no meio do caminho". Mais, no mesmo poema ele diz que nunca se esquecerá, na vida de suas retinas já tão fatigadas, de que "no meio do caminho tinha uma pedra", "uma pedra no meio do caminho".

Estava aqui pensando em como as pessoas tropeçam muitas vezes (para não dizer que tropeçam sempre) na mesma pedra, no mesmo ponto do caminho. Seria engraçado, uma cena típica de comédia, daquelas mais ao gênero pastelão, em que os atores vencem a gente pelo cansaço, pela repetição constante da mesma cena, do mesmo vício, do mesmo trejeito de certos personagens. Seria engraçado, mas é triste pra caramba, porque parece que não há avanço. Parece que quando se anda, anda para tropeçar.

Já me peguei refletindo algumas vezes sobre o que ouvi de um cara que era pastor. Antes de eu saber que ele era um mau caráter - apesar do cargo - conversávamos sobre História, sua área de formação. E em uma de nossas discussões pusemos em pauta a possibilidade de a história ser cíclica. Não só a história geral, mas também a de cada pessoa. A discussão era legal. Me lembro dela agora justamente porque estou pensando em padrões de comportamento repetitivo, que levam as pessoas a agirem sempre de modo igual. Inclusive em seus erros. Inclusive nas pedras em que tropeçam. Em geral, as mesmas. Ciclicamente.

Tropeçar na mesma pedra. Do mesmo caminho. Inevitavelmente. De novo e outra vez. Inexoravelmente. Não acho que seja burrice, não (como poderia fazer supor o ditado que fala sobre insistir no erro). Acho que tem algo além, do além, algo de psicológico, de espiritual. Será para se aperfeiçoar? Será para sofrer por gosto? Não sei, algo de algo. Será o rumo do destino? Será uma poderosa atração da pedra? Será um impulso da pessoa para a pedra? Acho que quando eu estiver com as retinas já fatigadas, ainda estarei inculcado com esse dilema.

domingo, 10 de março de 2013

De mim e de você

"Nem sei se gosto mais de mim ou de você". Esse verso do Roberto Carlos compõe uma música antiga, chamada Como Vai Você?, uma canção que atravessa o tempo e é constantemente regravada, sempre com um tempero diferente. Até onde sei, não foi compositor, mas cantou tantas coisas legais, que muitos de seus versos ficaram incrustados na mente de quem tem mais de 40. Esse "cara" (já que agora ele se intitula assim) já foi chamado de rei. E é preciso reconhecer: teve um período de glória nacional e internacional.

Nos áureos anos 70, sua carreira era um meteoro: rádio, tv, cinema e toda espécie de mídia queria ouvi-lo. Versos com o que usei para iniciar este texto badalavam a todo canto. Não estou certo se concordo com ele ou não, porque me parece um quê de autoanulação ou de supervalorização do outro em detrimento de si mesmo. Não parece saudável do ponto de vista psicológico nem do social, muito menos do afetivo ou seja lá do que for.

Do ponto de vista espiritual, se assim posso dizer (e acho que não), também estaria errado, uma vez que há um princípio religioso anterior ao próprio cristianismo, segundo o qual é preciso que amemos aos outros assim como amamos a nós mesmos. Não sei mesmo: me parece que sob nenhum aspecto é saudável ter o outro em maior estima do que a nós mesmos. Que há muita gente assim, há. E aparentemente feliz.

Não me canso de ver pessoas se "menos - prezando" em prol de outras. Deixam de cuidar direito de si para se dedicarem a outras. Recusam-se dar um tempo maior de conforto e de descanso para si mesmas, a fim de ofertar isso a outras. Cobrem de presentes outras pessoas enquanto a seara de presentes a si próprias segue à míngua. Para elas - é bem provável - o gosto da vida está justamente nisto: doar-se. Talvez seja assim, desse jeitinho samaritano, que elas realizam o "preciso tanto me fazer feliz", como canta o rei.

sábado, 9 de março de 2013

Mundo masculino no dia da mulher

"Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria, de que o mundo masculino tudo me daria do que eu quisesse ter. (...) Quem dera pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera, ser o verão o apogeu da primavera e só por ela ser". Isso é bonito demais. E longe, muito longe de querer ouvir aqui a mesquinhez de um discurso moralista, quero me ater à porção mulher da humanidade. Da humanidade, não, que é muito grande. Então, a porção mulher de cada pessoa.

Deus me privilegia em todos os dias. Todos. Ele me deu o privilégio imenso o de viver entre mulheres à maior parte do tempo. Agradeço a Ele a graça de ter uma mãe guerreira, batalhadora a seu modo, vencedora na educação que nos deu. Tenho duas irmãs simplesmente maravilhosas que eu realmente adoro. Circunstâncias da vida fizeram com que eu fosse criado na casa de minha avó, rodeado por 5 tias. Claro, estava lá meu avô para fazer o contraponto.

Minha graduação: Letras. Desnecessário dizer que 90% da sala eram compostos por mulheres. Quando comecei a exercer a docência, logo notei a predominância do gênero feminino na área. Em 1997 eu já era pai de uma filha. Em meados de 1998, ganhava minha segunda filha. Ambas, as maiores bênçãos que Deus me deu. Hoje, paralelamente à docência, faço formação continuada de professores. Mas, pela maioria da presença feminina, deveria dizer formação continuada de professoras.

Sou mesmo um privilegiado por ter, tanto na minha história remota quanto na minha história recente, a companhia frequente desses seres fantásticos que são as mulheres. O mundo masculino, por si só, não é capaz de se compreender como o apogeu da primavera, e muito menos de "só por ela ser". Vai aqui meu reconhecimento à tão essencial influência da participação das mulheres no resultado da pessoa que sou hoje.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Desde quando?

"E assim nossa vida é um rio passando, as pedras cortando, e eu vou perguntando: até quando? São tantas coisinhas miúdas roendo, comendo, arrasando aos poucos o nosso ideal. São frases perdidas num mundo de gritos e gestos num jogo de culpa que faz tanto mal". Olha, que preciosidade composta por Gonzaguinha há tanto tempo.


E tempo é meu tema hoje. Apesar da genialidade dos versos acima, gostaria de trocar uma palavra da inquietante pergunta lançada pelo filho de Luiz Gonzaga (outro gênio) e lançar a pergunta "Desde quando"? Essa pergunta aparece sempre de modo avassalador e atravessa a cabeça da gente como uma lâmina afiada que vem provocar a dissensão e não o consenso.

Misturados a discursos científicos, políticos, religiosos, psicológicos e outros das mais diversas naturezas, há tantos embates filosóficos a respeito, por exemplo, do início da vida, que dá até cansaço só de querer entrar na discussão. A vida começa quando a criança, literalmente, vem à luz? Ou começa quando ela já tem todos os órgãos vitais e sua devida estrutura de sustentação formados? Começa por volta do terceiro mês de gestação, quando o feto está se enformando? Ou começa muito antes, quando da concepção mesmo, no momento da fecundação do óvulo? Ou começa no despertar da atração que uniu o casal? Ou... Sei lá: desde quando há vida? Há outros âmbitos em que essa pergunta é feita.

Desde quando se ativa o movimento que resulta na morte de alguém (desde a parada dos sinais vitais? a complicação dos órgãos? o adoecimento? a situação que propiciou a doença? Desde quando se dá um processo que culmina na demissão de um profissional (desde o erro cometido? na distração que provocou o erro? o cansaço que gerou a distração? Desde quando tem início o conjunto de fatores que acabam na reprovação de um aluno (desde a média final não atingida? a escolha da estratégia de estudo? o nível de envolvimento? Para voltar à música do Gonzaguinha: desde quando é disparado o processo que finda uma relação conjugal (desde a execução da traição? os encontros? os planos de encontros? a admissão da possibilidade dos encontros)? Desde quando a gente se incomoda com esta pergunta: desde quando?