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terça-feira, 28 de julho de 2020

A palavra ALEGRIA e minhas três alegrias


Sabe aquele estado de espírito em que a gente tem a sensação de que tudo está no eixo, existindo como deveria existir e nos dando uma satisfação capaz de fazer nascer no nosso rosto o mais puro sorriso? Um estado de espírito que me lembra o seguinte trecho de música: “De repente fico rindo à toa, sem saber por quê”, verso cantado pela Maria Bethânia e que sempre ecoa nos meus ouvidos silenciosamente.
É o estado de alegria genuína que nos dá a sensação de que a vida vale a pena, a sensação de que cada momento é único, irrepetível e capaz de fazer nascer em nós os mais puros sentimentos cabíveis. Como adoro etimologia (ai de mim se não gostasse, sendo doutorado em historiografia do Português), fui ver a origem da palavra “alegria”. Sem surpresa para ninguém, ela vem – é claro – do Latim laetitia. Originalmente tem o sentido de “fazer nascer”; por extensão de sentido, também remete ao sentimento de dar à luz: alegria.
Trocando em miúdos, sentimos alegria quando vemos a vida brotar; estamos alegres quando temos a sensação de que a vida está em movimento, existindo tal qual ela deve existir; ficamos alegres por darmos vida a algo ou alguém e por recebermos vida de algo ou de alguém. Uma sensação, como diziam os antigos, inefável – ou seja: impossível de traduzir satisfatoriamente por palavras. E, realmente, há muitas emoções, sentimentos e sensações que as palavras, por mais poderosas que sejam, não conseguem alcançar. Por isso, rimos à toa, por isso suspiramos, por isso nos sentimos leves.
É extremamente importante estarmos em contato com o que e com quem nos dá alegria: sejam pessoas, fatos, objetos, animais, planos, sejam lembranças... sejam pensamentos. E aí, nesta última palavra, existe um grande inimigo da alegria: os pensamentos que cultivamos. Quando postos no que não nos traz vida, eles nos amortecem, eles matam a alegria, tiram o brilho da nossa alma, deixando a gente desalmado, desanimado (que, aliás, para quem não sabe: originalmente são palavras de mesmo sentido).
Então me coloquei a pensar no que me traz alegria. E eu digo sem a menor sombra de dúvida: há três fatores que me fazem uma pessoa feliz, que fazem a minha existência plena, que fazem a minha vida valer a pena a cada dia.
O primeiro deles é a minha família: a que me gerou e aquela que ajudei a gerar. Quando penso na minha mãe e em minhas filhas, meus olhos se enchem de lágrimas de satisfação pelo simples fato de essas pessoas existirem. Como elo dessas duas pontas da vida, com toda certeza me considero o mais feliz dos homens. Hoje, vivendo em segunda família, vivo a alegria de cuidar e ser cuidado, compartilhando com esposa e filhos o que tenho de melhor como ser humano.
Minha segunda alegria é a de ver alguém aprendendo algo comigo, desde algo da matéria em que me especializei, até algo simples como ensinar uma criança a amarrar seu tênis. Ver nos olhos da pessoa aquele exato momento em que os neurônios se tocam para formar uma aprendizagem realmente é impagável, justamente porque significa que passei a existir na mente daquela pessoa, ou senão porque provoquei um acréscimo de conhecimento que será útil para a vida toda. Isso é sublime, para mim.
Minha terceira alegria é aprender: por isso pergunto, por isso leio e ouço, por isso experimento e tento, por isso cresço e ajo para me tornar a cada dia uma pessoa melhor a serviço da minha família e dos que aprendem comigo. E eu próprio tenho muito o que aprender.
Assim, num ciclo, a alegria se reproduz em mim, brota, nasce, letitia. E me deixa “rindo sem saber por quê”.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

A palavra perseverança e eu



                Sempre procurei ter uma boa relação com as palavras, tanto com as que eu digo ou escrevo quanto com as que eu ouço ou leio. Isso porque sei do tamanho poder que elas têm sobre a vida cotidiana das pessoas. Ainda mais quando são ditas repetidas vezes, com intenção formadora, as palavras deixam marcas difíceis de apagar da memória das pessoas. E, quanto mais associadas à memória, mais ligadas a algum tipo de emoção, que pode ser boa (eufórica) ou ruim (disfórica). São palavras que muitas vezes definem o que somos.
                Experiências escolares da minha época (hoje nem tanto) levavam os professores a nos fazer repetir a escrita de uma palavra dezenas de vezes para que fixássemos sua ortografia. Quantas e quantas vezes repeti a tabuada, as capitais, os órgãos, as siglas. Inúmeras vezes advogados repetem palavras-chave para persuadir o juiz. Centenas de vezes os publicitários repetem slogans para fisgar consumidores. Tantas e tantas vezes repeti as letras de música que adoro. Infinitas vezes repeti para minhas filhas, tão pequenininhas à beira do mar ou em uma piscina: água na altura do umbigo é sinal de perigo. Pois bem: só depois de me tornar gente grande é que percebi o quanto uma palavra intencionalmente repetida pelo meu avô fez toda diferença no meu modo de ser: perseverança.
                Ele sempre nos dizia esta palavra como uma das características essenciais na vida de uma pessoa de bem. Agora, muitas décadas depois dessas experiências e apenas há alguns anos de sua morte, é que eu posso contemplar o efeito que a palavra perseverança causou em mim. Deus sabe o quanto sou grato àquele homem absolutamente simples e de uma sabedoria de vida absurdamente grande, um homem cheio de vida, de alegria, de sorriso fácil, de energia enorme, de dedicação incrível; um homem austero quando deveria ser; uma pessoa de valores claramente definidos. Ele me ensinou a perseverar.
                Juntamente com “humildade” e “obediência”, perseverança é a palavra que me traz à lembrança o fato de que é preciso me manter firme, ser constante, permanecer, não desistir. Foi assim que consegui resistir às muitas intempéries que a vida me impôs: a falta de recursos na infância, o abandono do meu pai, a solidão em grande parte do dia, o desafio da vida em São Paulo (considerando que vim de Janaúba – conhece?), o fato de trabalhar desde os 13 anos, as inexplicáveis crises convulsivas da adolescência, a ocupação do dia todo entre trabalho e estudo – que me trouxe um amadurecimento precoce –, uma separação que ficou na conta do imponderável, um zunido de 24horas nos ouvidos, umas dores lancinantes de hérnia... e tantas outras chances que eu tive de desistir. Em todas elas, escolhi perseverar. E sou feliz.
                De algum modo, o ensinamento do meu avô reverbera silenciosamente na minha cabeça e no meu coração. Esse ensinamento vive aqui dentro numa região da minha memória de longo prazo – aquela em que guardamos os conhecimentos essenciais aos quais não precisamos dedicar esforço para lembrar. São registros de memória que, em situações vitais nos fazem agir de modo a nos despertar para o valor da vida e para os valores da vida. Ainda que não tenhamos consciência deles, eles continuam firmes e fortes, eles perseveram em nós, atuando nessa fantástica máquina que é o nosso cérebro – amplamente desconhecido nas ações inconscientes.
                Estou certo de que é por preferir perseverar, que eu escolho conscientemente ver o que de melhor a vida tem para oferecer; enxergar o que há de bom nas pessoas, nos acontecimentos e nas coisas que nos rodeiam em nosso dia a dia. Sem dúvida, erro algumas vezes, mas não resta a menor dúvida de que o volume de acertos é infinitamente maior, porque o tino nos leva às decisões que, mesmo não parecendo as melhores imediatamente, vêm a se mostrar positivamente no longo prazo.
                E tudo isso porque, entre muitas, uma palavra dita em várias oportunidades pelo meu avô criou em mim um jeito de ser, de pensar, de agir de reagir, um jeito de viver. Já estou na casa dos cinquenta anos e me pego pensando na maravilha de herança deixada por ele – uma herança inestimável e que jamais tirarão de mim. Penso também no que estou deixando como legado aos meus familiares, aos meus amigos, meus alunos, à família que eu constituí e com a qual convivo todos os dias, e, sobretudo, no que estou deixando como legado às minhas filhas. Mas isso não se mede no presente, porque só depois de muito tempo é que se veem as marcas deixadas, gravadas no inconsciente como parte constitutiva da existência. Que Deus me dê sabedoria para sempre dizer palavras que gerem vida a todos os que me dão o privilégio de sua companhia.

O poder das palavras na vida cotidiana


As palavras que nós dirigimos às pessoas que nos cercam não entram por um ouvido e saem pelo outro. Mais, muito mais do que isso: elas percorrem o nervo auditivo e chegam ao cérebro onde serão processadas e interpretadas para que gerem uma reação. Quanto mais elas tocarem emocionalmente as pessoas que nos ouvem, mais elas ficarão registradas em sua memória e, dependendo do tipo de emoção despertada e da sua intensidade, tais palavras vão receber um espaço fixo nas lembranças, de tal forma, que vão se associar às referidas emoções como se passassem a andar coladas umas às outras. Isso significa que, ao dirigirmos nossas palavras, temos o poder de marcar indelevelmente as pessoas. Para o bem. Para o mal. (o triste é quando nossas palavras são indiferentes)
É como aquela experiência que fazemos com uma folha de papel. Quer saber como? Pegue uma folha de papel, qualquer que seja: sulfite, por exemplo. Observe-a com o seu olhar, seu olfato, seu tato; ouça o barulho que ela faz chacoalhando-a no ar. Como você a caracterizaria neste momento, considerando sua percepção? Vamos a uma segunda etapa: aumente o seu contato com ela. Para tanto, dobre ou amasse a folha o tanto e o quanto quiser ou puder. Agora desdobre ou desamasse a folha, a fim de voltar ao aspecto inicial, sem marcas de dobra ou de amassado.
Em breve, você verá que as marcas deixadas por sua ação vão ficar naquela folha por muito tempo. Mesmo que você a estique, mesmo que você a passe com ferro elétrico, mesmo que você a coloque sob uma pilha imensa de livros, ela não voltará ao seu estado inicial. Ou seja: ela guardará as marcas da sua ação. Dessa forma, também ocorre com o efeito das palavras que dirigimos aos outros, ou com as que nos dirigem, quando elas atingem nossas emoções. Por certo, não somos folhas de papel e, por isso mesmo, aprendemos a lidar com tais situações. Muitas vezes, esquecemos voluntária ou involuntariamente. Outras vezes, nós as ressignificamos. Mas uma coisa é fato: as palavras marcam e levam a alguma forma de ação.
As palavras são uma forma de ação sobre os outros, uma maneira de produzirmos coisas nas pessoas, um jeito de movimentarmos sua percepção, uma ferramenta para acrescentarmos algo ao seu conhecimento, um instrumento para despertar emoções boas ou ruins. Elogios e difamações, estímulos e desestímulos, honra e desonra, encorajamento ou desencorajamento... enfim: por meio das palavras, agimos sobre as pessoas. E é importante lembrar que, também por meio das palavras, as pessoas agem sobre nós.
Por essa razão, sabendo do poder que as palavras têm, é fundamental que saibamos lidar com elas para intermediar as nossas relações com as pessoas que nos são próximas. “Palavras, ai, palavras: que estranha potência a vossa”, escreveu Cecília Meirelles reconhecendo o incrível poder movimentado pelas palavras. Ela estava consciente de que é com as palavras que estabelecemos nossas principais interações; é com elas que criamos, mantemos ou destruímos tudo o que existe.
Sim, segundo a tradição judaico-cristã, por meio das palavras o mundo e tudo que há nela passou à condição de existência. De acordo com o relato bíblico, Deus criou o céu e a terra, o ar e a água, os animais em geral e o ser humano em particular... tudo foi criado pelo famoso “fiat” (faça-se) divino. Independentemente de crermos nesse relato, vale a intenção do autor, no sentido de que podemos, no nosso dia a dia, imprimir a nossa marca nas coisas – criando-as, alterando-as ou fazendo-as deixar de existir.  
 Um relacionamento, por exemplo, começa com palavras, com uma conversa que aproxima as pessoas. Seu uso cuidadoso faz com que elas acreditem em um futuro juntas (sem saber que já o estão vivendo). Dependendo de como as palavras forem sendo compartilhadas ao longo da vida desse relacionamento, ele poderá estar se fortalecendo ou poderá estar se deteriorando. Nesse sentido, as palavras podem estar levando à promoção da vida ou à aproximação da morte daquela relação. Sempre dependerá dos principais agentes de linguagem: quem fala e quem ouve. Dependerá das intenções em jogo: fortalecer, elogiar, motivar, estimular, agradecer, reconhecer... ou o contrário.
E é assim, escolhendo entre tudo o que pode e deve ser dito, selecionando o momento mais propício para dizer, a forma mais adequada, a finalidade mais nobre, vamos escrevendo ou falando o texto da nossa vida, deixando nossa marca na vida daqueles com quem nos relacionamos dia após dia. A meu ver, considerando o fato de vivermos ao lado de pessoas a quem queremos bem, deveríamos escolher sempre as melhores palavras para lhes dirigir, a fim de que eu possa lhes dar o melhor de mim para produzir nelas o que elas têm de melhor.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

A idade das palavras e as palavras da idade


A idade das palavras e as palavras da idade – palavras idosas
Prof. Dr. José Everaldo Nogueira Jr.

Penso que nessa quarentena a que estamos submetidos há mais de 100 dias, muitos desenvolveram formas de se manter emocional, física, psicológica, espiritual e intelectualmente saudáveis. Isso para que a Covid, que já matou mais de 10 milhões de pessoas, não matasse o que temos de melhor: o sentido da nossa vida cotidiana. Particularmente, em cada uma dessas áreas que citei eu tentei trabalhar algo e acho que (acho que) estou saudável. Do ponto de vista intelectual, eu estudei bastante: li muitos livros, escrevi muitos textos, montei cursos, fiz cursos, estudei línguas: inglês e italiano.

No caso do estudo da língua italiana, trata-se de um desejo antigo, um desafio, uma oportunidade de aprender um pouco desta que é a mais próxima da nossa língua-mãe, o latim. Ainda no nível mais elementar de leitura e compreensão de frases italianas vou me aventurando. Foi nessa experiência que me deparei com um vocabulário bem diferente (embora algumas palavras soassem familiares pelo fato de eu viver em São Paulo há mais de 40 anos) e com uma estrutura frasal diversa da que costumamos ver no Português, além de uma construção sintática e semântica bem interessante. No plano vocabular, uma palavra me despertou a presente reflexão foi “fenestra”.

Inicialmente me ela lembrou uma crônica do Luís Fernando Veríssimo, que brinca com a palavra “defenestrar”. Logo depois comecei a pensar sobre a idade das palavras e do quanto elas duram na nossa língua. Quando li a palavra “fenestra” e a coloquei em contextos diferentes com frases diversas, percebi que no Português atual, essa palavra muito provavelmente já está na gaveta daquelas que – como dizem os linguistas – caíram em desuso. Os filólogos, por sua vez, diriam que “fenestra” já é um arcaísmo. Os professores de Português talvez a utilizem como exemplo de uma variação linguística diacrônica – aquela em que o tempo cala e cega algumas palavras, tornando-as estranhas ao convívio moderno, como se fossem dignas de vergonha e de causar, por isso, algum constrangimento a quem a utiliza (coisa de gente velha). Palavras também são idosas, isto é, elas têm muitas idas, muita caminhada, muita experiência, muita utilidade.

Sim, é fato que o uso de algumas palavras, de certas expressões ou mesmo de alguma pronúncia pode ser denunciador do tempo e pode despertar ações de discriminação. Lembro-me aqui da palavra “datilografia”: pense-se um jovem dos dias atuais e pergunte-se a ele se conhece o sentido da palavra. Tome-se este mesmo jovem (aliás, usar a palavra “jovem” já não é algo tão “jovem”) para apresentar a ele a expressão “caiu a ficha” e veja-se se ele sabe explicar a expressão tomando sua origem. Por obséquio (kkk), não faça isso, porque ele vai dizer “tipo não”. E se você lhe perguntar se não gostaria de saber, provavelmente ele vá responder “tô de boa”. Dessa forma, enquanto nós – menos jovens – vemos nesse tipo de linguagem um empobrecimento da capacidade vocabular e comunicativa, eles – menos experientes – veem, na nossa forma de nos comunicar, algo lento, atrasado, ultrapassado, desnecessário.

“Fenestra” não existe no vocabulário dos mais jovens e, no caso de alguns, nunca existirá – de onde se conclui que esta realidade nunca terá existido em sua mente, em sua vida. Isso é triste porque, reduz a história, as possibilidades de comunicação rica, a variedade e flexibilidade, a competência discursiva. Triste também porque mostra que, de acordo com o modo de ser desta geração, os fatos, as coisas, as pessoas, as relações, as palavras... têm curta duração e são substituídas por outras que sejam menores e que possam caber nos contextos mais variados – sem prejuízo da comunicação porque, afinal, o que importa é comunicar. Ou, como dizem: isso não vai bugar a resenha porque tá de boas.

Não: o que importa não é, apenas, comunicar: é obter sucesso nas interações sociais mediadas pela linguagem e, quanto maiores forem as possibilidades de expressão, maiores serão as chances de alguém ser melhor entendido; quanto mais recurso vocabular, frasal, textual e discursivo alguém possuir, maiores serão as condições de ele se fazer entendido e de entender tanto o que lhe dizem quanto o que lhe é dito, o que lê e o que lhe é escrito. Enfim, em termos de interação social pela linguagem, tanto é importante conhecer um grande número de palavras (antigas ou não), quanto é importante estar atento às novas formas de comunicação, às novas palavras, às novas expressões, aos novos sentidos.

Se houver esta consciência de que precisamos lidar com o novo e com o velho, bem como de reconhecer o fato de que tanto palavras consideradas antigas quanto palavras ditas modernas têm seu valor na nossa comunicação do dia a dia, tanto melhor será a nossa relação com as pessoas, porque elas (as pessoas) também são antigas ou são novas. Assim como as pessoas, as palavras também têm idade, também são vitimadas por ações de inclusão e de exclusão. Muitos idosos estão sendo excluídos do convívio social, do mesmo modo que muitas palavras estão sendo deixadas ao relento para ali – muito de vez em quando – terem sua lembrança reavivada como algo que um dia existiu, um dia foi útil. Dessa forma, tornam-se palavras idosas, vistas apenas por uma pequena abertura numa parede, uma janela, uma fenestra.


Velhas palavras para pessoas novas





Muitos o consideravam um pão e viam justiça no fato de ele ter encontrado um broto em que se amarrou e a quem pediu em casamento em plena boate. Um adolescente que ouça esse relato – tão comum nos anos 50 – terá sérias dificuldades de compreensão, dado o uso de algumas palavras que tornam complicada a compreensão do que se quer dizer. Hoje em dia, para a maioria dos jovens, expressões como “um pão”, “um broto”, “amarrar-se” e “boate” soam estranhas. Elas são vistas como “coisa de gente velha”, e, assim, como coisa de gente velha, foram ficando para trás, caindo em desuso e entrando na categoria daquilo que não tem mais utilidade.
Expressões como essas são vistas como alvo de piadas, sobretudo, porque servem para caricaturar um quadro social daquele que é passível de riso; daquele que serve como esteio para mostrar a força do que existe em detrimento do que já existiu. Para os mais jovens, trata-se de palavras que não fazem sentido e não fazem parte do seu material linguístico, do seu universo vocabular. Quer dizer: eles não convivem com tais palavras; afinal eram utilizadas por pessoas de três gerações antes da sua. E como a questão geracional hoje é algo que muda com uma rapidez absurda, tudo o que é antigo é deixado de lado. Funciona com palavras, funciona com aparelhos, funciona com pessoas – seja no âmbito pessoal, seja no acadêmico, seja no profissional.
Do ponto de vista profissional, ações preconceituosas e discriminatórias baseadas nas diferenças de idade são conhecidas como etarismo[1]. Por meio dessa prática, o mundo tem visto pessoas velhas serem quase literalmente descartadas de suas funções – não por serem incapazes de aprender as novidades do trabalho nem por serem incompetentes no desenvolvimento de suas funções, mas apenas por não serem jovens ou – como diria meu aluno – por fazerem “coisa de gente velha”. Esquece-se de que o Brasil, em poucos anos, estará numa pirâmide invertida na qual a população será majoritariamente idosa. Esquece-se do tanto de sabedoria e de experiência acumuladas nas muitas idas da vida de um idoso.
Uma pessoa que já viveu mais tem grande chance de já ter lido mais, ter escrito mais, ter trabalhado mais, ter acumulado muito mais experiência, mais habilidade e mais competência do que uma pessoa que ainda depende de pesquisas no Google para se inteirar de coisas simples. Naturalmente isso não é uma generalização irresponsável, mas uma constatação. Nada impede que, dependendo da situação, um jovem em particular tenha mais leitura, escrita, trabalho e vivência do que um idoso em particular – mas essa não é a regra. Por conta dessa diferença de saber acumulado, as diferenças se mostram, se evidenciam inclusive nas palavras utilizadas. Daí é que dizemos que existem palavras que denunciam a idade.
Os usos de linguagem de pessoas com mais de 70 anos, é verdade, são o claro exemplo do que chamamos de variação linguística diacrônica[2] (histórica ou temporal) pelo fato de em seu vocabulário estarem presentes diversas palavras que têm pouquíssimo uso hoje em dia ou que não são mais utilizadas pelas novas gerações, cuja tecnologia – por um lado – banhou com novos termos e – por outro lado – empobreceu com termos generalizantes. Tome-se um idoso e se apresente a ele uma palavra como “upload”; ou peça-se a ele que guarde seus arquivos na “nuvem”; ou ainda que ele “tire um print da tela”; ou que ele escolha entre um sistema “Android ou IOS”. Tudo isso é pedir muito para uma pessoa que ainda lida em seu cérebro com a ideia de fotocópia.
O fato é que, enquanto uma palavra como “fotocópia” pode revelar a idade de uma pessoa, ou que uma palavra como “datilografar” possa ser reveladora do tipo de tecnologia que uma pessoa conheça, não se pode imaginar que esses detalhes linguísticos sejam inadequações sociais – no sentido de provocarem constrangimento em quem as ouve ou as lê. Pior ainda: não se deve discriminar alguém por utilizar palavras como essas, porque isso não é indicativo de maior nem de menor adequação: trata-se, apenas, de uma variação linguística. Comportamentos discriminatórios dessa natureza não revelam preconceito linguístico; revelam, sim, um preconceito social – que, como qualquer preconceito, deve ser evitado.
O outro lado dessa realidade tem tanto valor como este, isto é, do mesmo modo que um idoso não pode nem deve ser discriminado pelas palavras que ele utiliza, uma pessoa mais jovem também não deve ser discriminada pela mesma razão. Ambas as categorias de palavras têm seu valor em seu contexto específico e, nesse sentido, vale frisar a ideia de que, quanto mais competente alguém for para utilizar a linguagem, maiores serão as suas chances de sucesso nas interações sociais pretendidas. O inverso disso é verdadeiro também: quanto menos uma pessoa dominar a linguagem (o que implica dominar palavras antigas e novas), menos competente ela será para estar nos contextos em que ela pretende estar.
Assim como acontece com as palavras, acontece com as pessoas. Umas são discriminadas, ridicularizadas e relegadas a um segundo plano, enquanto outras são valorizadas, prestigiadas e priorizadas. Quanto mais soubermos conviver com as palavras (lendo, ouvindo, escrevendo e falando), melhor saberemos conviver com as diferenças de idade (respeitando, valorizando, prestigiando, valorizando). Palavras e pessoas, jovens e menos jovens, todas têm o seu valor, todas têm algo a contribuir, todas podem colaborar para a produção de um mundo melhor em que se possa viver em harmonia.



[1] PEREIRA, Marie Françoise Marguerite Winandy Martins. Um estudo sobre o etarismo nas organizações. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014.
[2] Preti, Dino. Sociolinguística: os níveis de fala. São Paulo: Nacional, 1987.