Valeu a visita!

Daqui pra frente, divirta-se trocando ideias comigo.
Conheça meu outro blog: http://everblogramatica.blogspot.com.br

quinta-feira, 21 de março de 2013

Nossos medos

E foi o que aconteceu aquele dia. Não tinha, assim, bem visto, um gato preto. Mas, enquanto esperava ser atendido numa consulta, FG teve a oportunidade de ler um texto. A revista era sobre eventos culturais e trazia destaque para o filme "O Corvo", de Poe. Ao final da reportagem, havia um conto do autor: "O gato preto". Ficou tão impressionado, que tinha a impressão nítida de ter visto um.

A impressão não largou dele o dia todo. Parecia roçá-lo com seus bigodes felinos. Arranhá-lo com suas unhas afiadas. Muito viva a imagem do gato. Era tarde da noite quando voltava da faculdade. Do metrô à sua casa, dava pouco mais de um quilômetro. Já beirava à meia-noite e, sem dinheiro, voltava a pé. Mochila pesada nas costas, precisava se inclinar para compensar o peso e manter seu equilíbrio. Livro, caderno, lapiseira e caneta, garrafa de água, blusa de frio, tudo colaborava pra mochila parecer ter uma tonelada. 

Cada pedacinho de plástico ou de vidro que refletisse a luz dos carros, ainda que por um átimo de segundo, fazia-o lembrar do danado do gato. Aquele quilômetro parecia se transformar em decâmetro. Se fosse sexta-feira, 13, sei lá o que poderia acontecer com o FG: dormiria no metrô, ligaria pra alguém vir buscar, ou, na impossibilidade disso, "pernas-pra-que-te-quero" e desandaria a correr até de olhos fechados, se preciso fosse, mesmo que a mochila arrebentasse suas costas.

Não dava para fazer nada daquilo. Tinha de atravessar os mais de mil metros até sua casa. Encheu o peito de coragem, tirada sabe lá Deus de onde, e foi. Olhos fixos na frente como quem implora que o destino chegue já. Mas a danada da mochila o puxava contra o chão, parecendo um par de mãos e braços que diziam: demore, fique, sofra...

O que é a cabeça de um sujeito com medo? Não tinha graveto que ele pisasse, que não fosse confundido com o rabo do bendito gato. Somava aquilo com os vidros e plásticos que brilhavam, o pobre FG entrava em parafuso. O pior foi quando pisou em desses galhos, que se quebrou com o peso do meu amigo e sua mochila. O barulho que fez, aquele estalo no meio da escuridão e do silêncio que batia entre um carro e outro que passava, quase tirou-lhe os sentidos.. O cara resolveu correr, e correu tanto que tinha a impressão de estar mais rápido que o pouco vento que batia de vez em quando.

O coração do coitado parecia que ia sair pelas orelhas, pelo nariz, pela boca, por onde quer que pudesse passar, inteiro ou despedaçado. Batia mais forte no peito do que suas pernas no chão. Numa dessas passadas, mandou o pezão numa pequena poça d'água. As gotas que respingaram na canela da outra perna assustaram ainda mais meu pobre amigo - cansado, sem dinheiro, no escuro, com peso e com medo.

Uma sirene desandou a tocar e aí é que o bicho se desesperou. E agora? Será que era a polícia atrás dele suspeitando de ser um bandido em fuga? A dúvida às vezes trava as pessoas: se fosse a polícia e ele corresse mais, seria pior. Se não fosse a polícia e ele parasse, poderia se fazer de presa para qualquer coisa que pudesse estar vindo atrás dele - bandido, fantasma, cachorro doido, ou o infusado gato preto.

Pensou em deixar a mochila para trás. Era o que tinha de fazer, pois se já estava rápido com aqueles 15kg nas costas, imagine sem eles. Faltava pouco: uns 600m. A parte mais escura do trajeto. Apesar de correr boa parte dos passos com os olhos fechados, não tropeçou uma vez sequer. Aquela barulheira que ele fazia parecia ecoar no ar e o que ecoava lhe dava a impressão de serem passos de outra pessoa que estivesse correndo atrás dele. 

Quase desmaiou o coitado. Mas fez umas respirações fundas, mais fundas que seu medo e, com essa técnica, conseguiu escapar do desmaio. Sentiu-se um herói. Por alguns segundos. Enquanto os 600m se transformavam em 200m, 100m, sentindo-se já em casa e começando a se tranquilizar, foi atravessado pelos latidos firmes dos cachorros que avançavam contra ele. Não fosse o portão, por cujas grades ele vislumbrou os dentes afiados do bicho irado, ele teria, naquela hora, partido desta para melhor.

Desviou-se tanto com o susto que tomou, mas tanto, tanto, que quase foi parar no meio da rua, o que fez com que um carro que vinha acelerado acendesse o farol alto e buzinasse sem dó nem piedade para alertar o FG. Naquela hora, se viu cumprimentando São Pedro e já desistindo de chegar em casa. Chegava o Japão, mas não chegava sua casa.

Mas chegou, coitado, mais rápido do que chegaria se tivesse vindo de ônibus ou de táxi. Suava feito um banhista de sauna. Seus ombros pareciam estar na cintura, com o peso da mochila. Não sentiu dor porque, com a circulação dificultada, já tinha adormecido as espáduas. Sua respiração não diferenciava mais o que era inspirar ou expirar. Entrou em casa, nem sei como. Não se lembrava em que cômodo tinha largado a mochila nem o que fez até, quase literalmente, desmaiar no sofá de sua casa. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário