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quinta-feira, 17 de abril de 2014

Morrer só



Perdi hoje uma pessoa que foi muito importante para aquilo que vim a ser em dois dos papéis sociais que exerço: o paterno e o acadêmico-profissional. Só sou pai hoje, porque a primeira filha dele é a mãe das minhas filhas. Só tenho o título de doutor hoje, porque ele bancou financeiramente meu primeiro semestre de mestrado. Claro que tive tempo de agradecer e dar o devido reconhecimento à participação dele na minha vida. Os degraus do destino, sempre conduzido por humanos, nos separou. Já não o via havia anos, embora sempre perguntasse como estava.

No Hamlet, a frase que mais me encanta não é a famosa "ser ou não ser: eis a questão", mas a "morrer, dormir não mais". Na vida, às vezes os percursos nos fazem ir deixando de ser. Vão nos fazendo deixar de ser para uns. Vão nos fazendo deixar de ser para outros. Muitas vezes, esses percursos vão nos fazendo deixar de ser para nós mesmos. E isso é triste. É muito triste porque, uma vez nesse estado, não haverá dia ensolarado que não esteja banhado de cinza.

Foi o caso dele. Depois que se aposentou, perdeu o bonde da história. Lembro, agora com uma saudade triste, das muitas histórias de quando ainda se andava de bonde por São Paulo. Tantos percursos, tantas histórias. Ele sempre foi absolutamente ativo, trabalhava muito, cerca de 70 horas semanais, como sempre dizia. Depois de se aposentar, embora tenha tentado um trabalho autônomo aqui, outro ali, sucumbiu. Cedeu à diabete, sua hérnia passou a atacá-lo mais, seu sentido passou a variar.

De repente, um pouco menos que de repente, passou a se ver só. Passou a viver só. Passou a ser só. Sozinho habitava aquela casa imensa que ele se orgulhava de ter construído. De vez em quando saía para consultas médicas, ou para entregar jornais, ou simplesmente por sair. Perdeu-se pelas ruas. Reencontrou o caminho e passou a andar com o próprio endereço no bolso. Alguém percebeu que ele já não saía mais. 1 dia. 2 dias. 3. Foi neste endereço que ele foi encontrado. Já tinha deixado de ser. E ele, que gostava de dormir, desta vez, não acordou mais. Entre o ser e o não ser. Ele é lembrança, mas não é presença.

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