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E trechos de receita ou hinos de futebol transcritos aleatoriamente, conforme
casos divulgados pela imprensa? Por quê?
Há que se analisar o contexto em que a citação a um
hino de clube ou a uma receita aparece na redação do candidato. Prega-se, há
muito tempo, a intertextualidade, isto é, a capacidade de o candidato citar
outros textos como forma de corroborar sua própria argumentação. Se a receita
ou o hino de clube – evidentemente um trecho e não na sua completude - vier com o intuito de fortalecer a qualidade
do raciocínio, não vejo grande problema – embora seja um recurso não
recomendado em termos de argumentação por autoridade. Entretanto, se o trecho
de hino ou de receita vier em tom de zombaria ou de desprezo pela situação
avaliativa, é evidente que impedirá que a redação tenha nota máxima, sobretudo
porque fere a própria relação formal entre os participantes da situação
comunicativa: um candidato e um avaliador.
Se mal utilizada a citação, o candidato também pode perder pontos
relativos ao domínio do gênero textual cobrado – no caso do ENEM, uma
dissertação argumentativa. Em textos assim, todos os enunciados devem convergir
para fortalecer a argumentação do candidato. Se não houver essa finalidade,
haverá inadequação.
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Redatores podem ter boa argumentação e, num contexto de nervosismo de exames,
tropeçarem na gramática?
Podem. E não só redatores em situação de exame
vestibular. Qualquer um de nós pode tropeçar na gramática, assim como pode
tropeçar na escolha de uma roupa, de um talher. O comportamento linguístico é
um comportamento eminentemente social. Assim como um erro ortográfico ou um erro
sintático não compromete o texto todo, uma escolha de um talher ou de uma peça
de roupa considerada errada não impede que alguém se vista ou deixe de
se alimentar. Qualquer pessoa em contexto de nervosismo está mais exposta a
erros, e isso deve ser considerado por ambas as partes: pelo redator e pelo
candidato.
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Neste caso, sua aprovação pode ainda assim ser considerada justa? Por quê?
Enquanto não nos libertarmos do ideal clássico de
perfeição e do maniqueísmo que divide as coisas em justas e injustas, só boas
ou só ruins, continuaremos jogando fora da bacia o bebê e a água do banho. Não
são poucos os exemplos de pessoas hoje absolutamente respeitadas dizerem
claramente que não dominam gramática. Luís Fernando Veríssimo é um. No seu
famoso texto O Gigolô das Palavras, ele afirma claramente que “Escrever bem é
escrever claro, não necessariamente certo”. E ele ainda brinca com isso,
dizendo mais: “Dizer ‘escrever claro’ não é certo, mas é claro, certo?”. Não
quero comparar os candidatos ao Veríssimo nem este àqueles. Quero apenas dizer
que considerar injusta a aprovação de alguém apesar de um ou outro erro
gramatical pode ser uma postura de inflexibilidade que tende a revelar que só
os perfeitos têm lugar ao sol. A vida não é assim: em todos os papéis sociais
estamos sujeitos a falhas. Mas, assim como nós mais acertamos que erramos, não
somos execrados a cada erro cometido, também os candidatos não devem ter
considerada injusta sua aprovação apesar de seus erros, pois eles mais
acertaram que erraram. Não, não estou dizendo que temos de ser coniventes com
erros, mas que a nossa postura diante do erro precisa ser revista.
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