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domingo, 30 de março de 2014

Errar. E rir



Há poucas certezas na vida. Bem poucas. E as que desfrutam desse status de infalibilidade, volta e meia, são surpreendidas por algo que lhes abala a estrutura. É curioso pensar como em dias de tanta correria como os que vivemos, as possibilidades de cometimento de erros se tornam bem maiores. Parece que nosso ritmo desenfreado potencializa nossa capacidade de errar.

Negligência, imperícia e imprudência são, segundo o conhecimento jurídico, as principais causas de cometimento de erros. Por essa perspectiva, alguém pode errar por ser irresponsável e não não tomar todos os cuidados que devem ser tomados para a condução de um processo; ou errar por não ter a capacitação necessária para realizar esta ou aquela tarefa (de que natureza for); ou errar por agir de forma a correr riscos que podem comprometer um resultado almejado.

Guardadas as devidas proporções dos erros (eliminando-se, por exemplo, os que resultam em tragédias, os que são ofensivos aos valores ou os que resultam em prejuízos indeléveis a outrem...), tão importante quanto reconhecer o erro e buscar suas causas, com a finalidade de aprender com elas e não cometê-las mais... tão importante quanto isso tudo é ter uma relação positiva com o erro e usá-lo a seu favor. Dessa forma, obtém-se crescimento pessoal, profissional, acadêmico - social em geral.

Outro ponto absolutamente importante, a meu ver, é algo que representa elevado grau de maturidade, de responsabilidade e, paradoxalmente, de seriedade é a capacidade de rir dos próprios erros. É olhar para eles como quem acaba de ver um gracejo qualquer; a partir disso, aceitar sua dimensão humana - passível de erro e, mais importante, de correção. Errar, etimologicamente, significa andar a esmo, sem rumo. O erro, portanto, é parte do nosso caminho.

sábado, 29 de março de 2014

Túnel no fim da luz



Uma expressão muito utilizada - e banalizada justamente pelo muito uso - é de que "há uma luz no fim do túnel. Às vezes tenho a impressão de que muita gente, quando passa a utilizá-la conscientemente, o faz porque está num momento em que passou a ver um túnel ao final da luz. Isto é, quando a luminosidade da alegria, do bem-estar, da saúde, da boa convivência e do que mais for bom passa a se afunilar, como se entrasse em um túnel que vai se estreitando.

Desse ponto em diante, a expressão deve gritar desesperada como um afogado o inverso de sua imagem, como num espelho opaco: há uma luz no fim do túnel. Ligada a um último fio de esperança, ela brilha parcamente como o olhar de quem está prestes a fenecer. Mas, sabe Deus de onde, arranca forças do invisível que lhe salta no escuro e implora pelo direito à vida. Criam-se, então novas expectativas, fazem-se novas promessas de correção de rumo, acredita-se ter entendido o que antes era celeuma.

Daí em diante, um espírito parece tomar conta do que está dentro do túnel de onde se avista a luz (ou dentro da luz que só permite ver em forma de túnel) e o empurra na direção da luz. Certezas começam a se construir, um embate entre entre as práticas envelhecidas, mas não melhoradas como vinho, acontece contra as ideias novas (mas ainda sem o viço da vida). Um fôlego preenche os pulmões como nunca, as pupilas tentam se dilatar na tentativa de interiorizar aquele feixe de luz.

Um verdadeiro milagre da vida parece querer acontecer entre o momento em que o minúsculo ponto de luz adentra os olhos tomando o nervo ótico e o momento em que o cérebro passa a processar aquela informação como uma fonte de esperança. O sujeito sente o coração bater-lhe mais forte - afinal, é ele - o coração - que está influenciando a leitura do cérebro. O resultado disso somente ele poderá saber: se será luz no fim do túnel ou um túnel finalizando a luz.

quinta-feira, 27 de março de 2014

O bichinho do ran ran



Há muito tempo (acho que no tempo em que eu comecei a me interessar por propaganda - fato que me levou a cursar até o segundo ano de Publicidade) havia um anúncio que lançava como pergunta provocadora para o público o seguinte: "O bichinho do ran ran pegou você?". E, logo a seguir, trazia uma oferta de pastilha que aliviaria os incômodos sofridos pela garganta que se via vitimada por pigarros constantes.

Vivendo numa megalópole como vivemos, sofremos consequências diretas. Tanto boas quanto ruins. São Paulo, cidade que desfruta do glamour de estar entre as 10 maiores do mundo (é a 6ª, com 20 milhões de habitantes), tem um altíssimo nível de emissão de poluentes - o que piora significativamente em épocas de falta de chuva. Aí, não tem jeito: o bichinho do ran ran alcança muitas gargantas.

Muitas vezes o estímulo a este incômodo é externo, como disse acima. Outras, não. Muitas vezes, o sintoma é o pigarro. Outras, não. O estresse de uma cidade como esta (que eu adoro) em geral produz males de natureza não só física, mas também emocional e psicológica. E neste caso, não há pastilha que resolva. Medos, angústias, depressões, traumas e complexos não são curados com simples pastilhas.

Assim muitos seguem seus dias convivendo com sua metafórica garganta incomodada pelo bichinho do ran ran. Entre ruas e avenidas, em entradas sem saídas; entre ônibus e trens, farmácias e armazéns; entre um profissional e outros, como motoristas e pilotos... seguimos nossa vida tirando sarro do pigarro que se instala na garganta e desafina o que canta ou inibe o que encanta.

Inveja boa - existe?



Há quem acredite que as coisas são apenas o que são. E ponto final. Como pensavam os pré-socráticos: o que é é; o que não é não é nem pode vir a ser. Não sou desses. Antes, penso que as coisas não são; elas se tornam. Ou melhor: nós as tornamos, ora consciente ora inconscientemente; ora voluntária ora voluntariamente; ora como resultado de nossa ação interior, ora como resultado de influências externas a nós. Mas, para mim, nada é. Tudo está sendo.

Não creio que o sentimento de inveja seja algo necessariamente ruim. Ela pode ser boa. Pode movimentar ações legais para a consecução de algo. Quando é assim, normalmente damos a ela um nome menos marcado semanticamente por carga negativa. Chamamos de desenho, de sonho, de aspiração... de qualquer outra coisa, menos de inveja, porque esse sentimento envolve alguma forma de hostilidade, de desejar mal ao outro que tem o que eu não tenho. Não. Longe disso. Um dos sentidos originais da palavra derivada da forma INVIDEO é olhar demasiadamente para, é desejar.

Nesse sentido, invejei esta quarta-feira. Do que fiz no trabalho orientando meus alunos e dos momentos (sempre) alegres que tivemos; dos alunos tristes que pude acolher. Tive inveja dos momentos de coordenação dos trabalho. Inveja dos momentos de orientação de estudos. Foi uma quarta-feira invejável. Para fechá-la, nada melhor do que um show com músicas dos Beatles, muitas sob a pegada do blues.

Pois esta foi a penúltima coisa deste dia. O bar era primoroso, ao mesmo tempo elegante e familiar. Assisti ao espetáculo tranquilamente sentado, à beira do palco. Não bastasse a qualidade da música, entre todos ali havia um casal, ambos, homem e mulher, entre os 60 e 70, que dançavam maravilhosamente bem. Os cabelos brancos de um e o corpo já "formoso" da outra esbanjavam técnica e alegria. Quis cantar e tocar como a banda "Blues Beatles"; quis dançar como aquele casal. Mas estava já bem satisfeito apenas por estar ali.

terça-feira, 25 de março de 2014

Passado esticado ao agora




Dia cheio hoje. Emoções distintas e seguidas. De seriedade no trabalho às gargalhadas múltiplas no intervalo. De orientação de estudos para crianças à orientação de adulto em pós-graduação. De motorista das filhas da Escola pra casa, de casa pra Cultura, da Cultura pra casa... disso tudo a cozinheiro que prepara o jantar das filhas. De correção de provas à escrita de blog.

Cada um desses eventos tem um quê de especial e, se eu olhar um por um, sempre será possível extrair belíssimas histórias para contar aqui ou ali. Vou me ater ao penúltimo par das situações referidas no parágrafo anterior, isto é, ao momento em que voltava com as filhas para casa. Um farol antes de chegarmos. A perplexidade tomou conta de mim de um tal modo, que quase perdi o tempo do farol - que abriu e eu continuei parado por um tempo.

Minhas filhas conversavam muito seriamente sobre maquiagem e aderência dela no rosto. Foi isso que atraiu meu olhar para elas, como quem olha para o passado que esticou até aquele momento único da nossa existência. Eu olhara para elas naquela noite de 25 de março, mas só conseguia enxergar o rostinho delas de quando tinham 2 aninhos cada.

Olhos quase marejados, esperei uma brecha no diálogo para reafirmar o quanto adoro cada uma delas e o quanto são importantes para mim. Disse mais: que era uma experiência inigualável poder acompanhar o crescimento, o desenvolvimento de duas pessoas tão amáveis, tão sensacionalmente humanas e que tanta alegria trazem para os lugares onde estão. Ver aquelas ex-criancinhas adoráveis como adolescentes maravilhosas e prestes a assumir as demandas da vida adulta foi algo que tornou meu dia mais cheio de emoções.

segunda-feira, 24 de março de 2014

O olhar cheio de nada



Estou aqui aprendendo a tocar uma música tão antiga quanto eu, de um artista respeitadíssimo - bem mais velho do que eu. A música: "Like a rolling stone". O artista: Bob Dylan. Ambos dispensam apresentações, mas não reflexões. Ele pela imensa contribuição que deu não só à música, mas também ao próprio jeito de pensar de sua época. Ela, por revelar uma mudança de curso na vida que deixa qualquer um pasmo, desejando se agarrar a qualquer galho de beira de abismo, a qualquer crença em um mundo melhor, a qualquer palavra enganosa com sabor de boia para quem se afoga em alto mar.

A letra é de uma força desconcertante. E dela eu destaco aqui um que acho nocauteante: "...as you stare into the vacuum of his eyes...". No contexto, no auge de sua miserabilidade, alguém espera um acordo de quem sequer considera a possibilidade disso. O olhar desesperado dá de cara com o vácuo do olhar do outro, que lhe é superior. Dois olhares cheios de nada. Um, desesperado. Outro, indiferente. Um querendo invadir para encontrar alguma esperança. Outro, esperando inerte para não ser invadido.

Na verdade, o olhar vazio é apenas uma questão de perspectiva. O olhar vazio é uma vista; um ponto de vista, ao mesmo tempo em que é uma questão de ponto de vista. Um olhar perdido pelo espaço indefinido - "like a rolling stone". A vista sem prazo de voltar. Ele ainda não está cheio de estar vazio.

O olhar vazio pode estar se enchendo da saudade do que perdeu. Pode estar pleno do futuro que não chegará. Pode estar repleto de um presente que não o preenche. Um mirante sem paisagem. Óculos escuros no breu da madrugada. 



domingo, 23 de março de 2014

Levando alegria



Essa minha rua tem (me) dado o que falar. A foto acima foi tirada bem no comecinho da rua, no farol do cruzamento, entre um posto policial e um posto de combustível. O rapaz que carregava a carroça com diversos tipos de material reciclável esperava o farol abrir para que pudesse atravessar. Me chamou a atenção o fato de a parede lateral de sua carroça ser formada por duas placas grandes. E uma delas, estava escrita a palavra "aproveite", mas não dava para saber o quê. Duas linhas abaixo, estava escrita a palavra "alegria". 

Pensei comigo mesmo: o rapaz está levando alegria. Em princípio, um pensamento tolo, daqueles que a manhã ainda está tecendo conforme a lentidão do pensamento em começos de dia. Como poderia estar levando alegria, carregando uma carroça? E eu, de dentro do meu carro, com os vidros fechados naquela manhã quente, alvejado pelo ar condicionado? Sei lá o que é que eu estava levando. Mas isso não me interessava naquela hora. Me concentrei na cena que me prendia a atenção, até o farol abrir. Perdi a cena de vista, mas não deixei de registrar.

Incomodou-me o dia todo, ainda mais porque me lembrei de uma frase de meu avô - um Sebastião nordestino, que completa 88 anos amanhã. Recém-chegado a São Paulo, em sua mais recente visita a nós, ele se deparou com uma cena dessas. Entre sarcástico e ingênuo, emendou uma frase fortíssima, que todos - infelizmente - entenderam como piada na hora: "Ué, na minha terra, quem puxa carroça é cavalo". Trágica frase disfarçada em comédia, que fez os ouvintes rirem quando deveriam chorar.

Um carregador de carroças recebe, em média, 0,8 centavos por cada quilo de material reciclável que ele levar até um depósito. Isto: 0,8 centavos. E vive disso. Ele e sua família. Para aproveitar as palavras da placa vermelha da carroça que vi, pergunto sem querer ouvir resposta: é mesmo possível dizer que aquele homem que vi puxando a carroça realmente aproveita uma oportunidade e carrega alegria? 


sábado, 22 de março de 2014

Sapato velho



Lembrei hoje de um comentário que uma moça, jovem, fez certo dia. "Nossa, tem uma banda nova aí bem legal! Chama Roupa Nova". Pensei comigo se comentaria ou não seu equívoco. Achei que seria deselegante e decidi falar apenas se ela quisesse saber. Como não quis, conversamos sobre as músicas desta "nova" banda. Uma música especial havia chamado a atenção desta moça: Sapato Velho. Como eu lhe disse que há tinha ouvido a música, pudermos conversar um pouco sobre a letra.

A música fala de uma pessoa que mudou de posição radicalmente. De alguém que "tinha estrelas nos olhos e jeito de herói; de alguém que era mais forte e veloz que qualquer mocinho de cowboy", aos poucos, torna-se  alguém que passou a ser "simplesmente como um sapato velho". Daí eu e a moça passamos a conversar sobre o fato de se ser um sapato velho, dentro, é claro, das condições aparentemente favoráveis que relatávamos naquele momento. E até que não eram poucas as funções do sapato velho. Entre as mais usuais, nos ativemos em duas.

Eliminar a vida de insetos indesejados, sem se importar se o corpo do morto vai ou não sujar o solado do sapato. Afinal, quando é velho, a gente não importa mais. Outra função: prender a porta, para ela não bater. Para isso, o colocamos entre o fim da porta e o chão ou entre a porta e o batente. Quando o sapato é assim, a gente não liga se vai estragar a tinta ou o formato dele. O foco nesta hora está em acabar com o incômodo da porta. O sapato é secundário. Ou mais. Quer dizer: ou menos.

Claro que continua sendo um sapato, embora velho. Porém, em sua função primeira, ele não atua mais como tal. Sua atuação está alocada em outras funções. Quando se lembra dele é para as novas funções que a velhice lhe atribuiu. De vez em quanto, na ausência absoluta dos que ocupam a posição de novidade, basta que este sapato velho seja calçado para que ele volte a aquecer os frio dos pés de quem o trocou. Enquanto na cabeça do sapato velho, ele está se vendo como multitarefa, útil para tudo, na mente de quem o trocou, ele está sendo visto como quebra-galho de umas coisas, ou como última opção para outras.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Coisas que anelamos



Assisti, ao vivo pela Internet, à ocultação de Saturno pela Lua. E, agora há pouco, a reaparição de Saturno e seus anéis - aquela maravilhosa imagem formada por uma concentração gigantesca de gelo, poeira e material rochoso. Para nós, parece apenas uma pista de patinação espacial que dá a volta em um planeta enorme. Mas é mais que isso, bem mais. Um verdadeiro espetáculo ao qual não temos acesso, a não ser a distância.


A distância é pouco dizer, porque Saturno dista do nosso planeta a bagatela de (quase) 1.500.000.000 quilômetros. Acho que com uma distância dessa nenhum mineirinho diria que Saturno está logo ali, a um tirinho de espingarda. Nenhum baiano iria dizer que, para se chegar a Saturno, basta seguir em frente toda vida. Nem o Shreck teria sua ogra coragem de dizer que Saturno está "so far far". Isso porque esses anéis estão muito, muito, muito longe do que o que quer que suponhamos mais longe possível.



Tem coisas muito ruins que estão aí, desfrutando de existência, apesar de distantes de nossos olhos de pobre alcance. Coisas grandes aneladas, que, se estivessem perto ou sobre nós, nos pressionaria tanto, que iríamos implorar pela vida com clemência de condenado à morte. Tem coisas ocultas, que só se mostram de tempos em tempos, apesar de gigantescas. Coisas que seguem sua vida independentemente da nossa, mas que, de tempos em tempos (longos ou breves) fazem questão de nos recordar que ainda vivem. Cada um sabe o que são essas coisas, quando se vê pressionado a fechar os olhos de pavor.



Mas há também coisas boas, maravilhosamente boas, para as quais queremos destinar nosso olhar, nosso ouvir... todo nosso sistema sensorial, emocional, espiritual e intelectual. São coisas que anelamos. Uma série de coisas incomensuráveis em torno das quais queremos envolver os nossos anéis, formados de amor, de calor e de um pulsar vital que se quer fazer visto, não a 1.500.000.000 de quilômetros, mas a uma distância que dê a impressão de estar dentro de nós. Cada um sabe a fome dos olhos que querem ser saciados por uma imagem de dimensões planetárias, como a de Saturno e seus anéis.




quarta-feira, 19 de março de 2014

O bem



Jamais vou erguer olhos ou braços aos céus reclamando de algo. Eu sequer vou pensar alguma maledicência relativa a isto ou àquilo da minha vida. Se o fizer algum dia, terá sido a maior das injustiças contra mim mesmo e contra toda a graça que a vida me oferece a cada momento dessa minha, já longa, existência. São 45 anos de experiências riquíssimas e que rendem muitas histórias pra contar. Coisas pequenas, que se revelam como grandiosas para mim.

O sorriso livre que posso compartilhar com os que estão à minha volta, em casa, no trabalho ou em qualquer lugar; a sensação de tranquilidade e paz que tenho por respeitar a todos e querer-lhes o bem - fato que se volta para mim com uma intensidade tamanha. A existência das minhas filhas, que se torna a cada dia a principal razão de cada instante da minha vida. A realização pessoal e profissional que vivo hoje em dia. A saúde de que desfruto; os amigos que tenho, enfim: não me faltam motivos para ser uma pessoa absolutamente grata.

Hoje, uma experiência me fez novamente ressaltar o bem que invade minha vida diariamente. Ainda não eram 8h da manhã. Eu desenvolvia uma aula com meus alunos de 9ºano, quando eles me alertaram que alguém estava à porta da sala, que fica sempre fechada. Quando olhei para trás, não vi pessoa alguma. Por isso fui até ela e abri. Vi a alguns passos de distância o Irmão Davide Pedri. Expliquei a ele o que os alunos me disseram e me desculpei por não tê-lo visto a tempo de abrir-lhe a porta.

Ele disse que não havia problema algum. E completou me dizendo que havia inserido meu nome em suas orações matinais. Aquilo me comoveu. Me comove até agora, porque, convenhamos, isso não é algo que aconteça todos os dias. O fato de ser hoje o dia de São José fez com que ele se lembrasse de mim (que, pouca gente sabe, também sou José). Achei de uma delicadeza, de uma sublimidade, de uma sensibilidade tal, que só poderia mesmo ter vindo de uma pessoa tão humana, tão sábia (como revelam seus cabelos brancos) e tão serena (como revela seu tom de voz e o ritmo de sua fala). Que Deus abençoe este homem que nos ensina muito, muito mesmo, com seus gestos e com sua vida. É assim uma pessoa de bem.

terça-feira, 18 de março de 2014

Perda ou ajuste

O esfriamento da porção mais interna de Mercúrio teria resultado em um encolhimento de 7 km


Às vezes tenho muito desejo de estudar astronomia para entender um pouco melhor esse mundo que está à volta de todos nós. Entender já seria demais; o puro prazer de saber um pouco mais já seria motivo de grande deleite. O pouco que sei já me deixa fascinado. Cada pequena nova descoberta faz nascer esta vontade em mim: estudar planetas, astros e outros corpos celestes que orbitam o Sol tanto quanto a Terra.

Quando menino, dentro das parcas possibilidades que tínhamos, lembro que minha mãe participava do Clube do Livro, um programa antigo pelo qual comprávamos livros, que acabavam saindo mais em conta. Dentre outros, lembro claramente de ter lido "Fenômeno Ufo". Via com um entusiasmo fora do comum os programas apresentados por Carl Seagan sobre o Universo e sua origem.

Hoje, sei lá quantos anos depois, ainda que esporadicamente, tenho lido sobre o nosso planeta, seu satélite, sobre o Sol e tantos outros fenômenos siderais. A Uol de hoje divulga uma notícia segundo a qual Mercúrio, o planeta mais próximo do Sol, encolheu 7 quilômetros. Na minha ignorância, que me permite saber que a extensão do raio de Mercúrio é de cerca de 2.500 quilômetros, não sei dizer se este encolhimento é muito ou se é pouco. Sei apenas que é. Nada mais.

Não sei a dimensão nem o que representa um encolhimento de 7km num raio de 2500km de Mercúrio. Não tenho informações suficientes para dizer se é perda ou se é ajuste. Sei que algo se perdeu. Assim como algo se perde da gente. Ou como algo que se perde na gente. Por muito tempo a gente fica sem saber se foi perda ou se foi ajuste. Fica sabendo apenas que tinha algo e que deixou de ter.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Um tanto do tanto tampado



Esta de hoje é uma noite de lua cheia. Bem cheia. Daquelas que refletem bastante a luz recebida, iluminando o caminho dos amantes, a trilha dos perdidos, a mente dos confusos, a razão dos emotivos, a emoção dos racionais. Só que não. Há tanta nuvem, que a lua fica escondida. Impossível vê-la em sua totalidade. Por conhecimento prévio, e só por isso, sabemos que ela está ali. Mas não se vê.

Lembrou-me Pessoa, como Ricardo Reis, em um poema que já citei aqui algumas vezes: "Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive". Está ali ela. Inteira. E eu tenho consciência disso. Volto para a varanda. Me apoio no parapeito querendo presentear meus olhos. Mas não a vejo. Tanto de mim, tanto de nós, é sabido que está aqui, que está aí, que está. Um tanto desse tanto, tampado.

Com o olhar voltado para cima, absolutamente insatisfeito, mas super compreensivo com o fato, entendo que há razões para ela não aparecer. O tempo se organizou de tal modo que reuniu entre mim e o firmamento uma camada espessa de nuvens que parece apenas esperar o momento para desaguar sobre todos nós aqui embaixo. Já vejo raios. Ouço relâmpagos. Em breve janelas e varandas estarão fechadas para mim. E a lua ficará mais distante ainda.

Aqui dentro, lanço o olhar para dentro de mim mesmo, como representante de um imenso contingente de pessoas que se querem inteiras, que se põem todas em tudo que fazem, que querem brilhar em sua totalidade e viverem altas. Nem todos o conseguiram. Ainda. Falta descobrir, literalmente, as nuvens que impedem o brilho. Falta descobrir-se, descortinar-se, desvelar-se.




domingo, 16 de março de 2014

Quantos sentimentos cabem?



Quantos sentimentos um homem é capaz de suportar? Não sou capaz de compreender o tanto de sentimentos que há. Se são poucos, se são muitos. Se são muito poucos ou se são pouco demais (o que dá no mesmo). Às vezes acho que os básicos são muito poucos, mas de uma complexidade sem tamanho, com um imenso leque de variação, que vai alternando seus matizes ao sabor dos ventos da vida que vivemos.

Eles são tão únicos e ao mesmo tempo tão cheios de dobraduras, que, se não se misturam com outros, pelo menos são derivados deles ou desembocam neles. É como se estivéssemos saboreando uma vitamina de frutas e tentando distinguir o sabor de cada uma. Difícil. Mas, bom. Fica mais difícil ainda quando se misturam a sensações que o corpo experimenta em diversos níveis.

A sensação de correr contra o vento, a de ver a paisagem passar na estrada e outras são, para mim, tão maravilhosamente gostosas, quanto a de saltar de uma escuna e adentrar o mar sem fim. Sentir a água resfriando cada centímetro do corpo que mergulha, sentir o corpo ir até onde ele consegue na profundidade infinita. Ver, ouvir e tocar ficam completamente limitados à água. Depois, sair dela e não ter chão ao alcance é uma sensação indescritível.

O sentimento da paixão, seja lá por que for ou por quem for é algo que nos arrebata com o mar quando nos damos a ele. Tocar uma música, escrever um texto. Ensinar, jogar futebol. Presentear alguém com algo ou comigo mesmo. Reconhecer, ser reconhecido. Motivar, ser motivado. Essas e outras são ações que me fazem mais gente. Me fazer sentir que sou humano. Saber sentir é uma arte que me tem como aluno.

sábado, 15 de março de 2014

A cara da miséria


Se a pobreza tem muitas faces - como se sabe há muito tempo - a miséria tem mostrado, paradoxalmente, ter muito mais. Uma das poucas oportunidades de a miséria ter mais. Eu já havia ficado um tanto abismado quando fui surpreendido ao ver um portador de síndrome de Down como morador de rua. Já teria sido incômodo ver um morador de rua. Já teria sido comovente ver um rapaz com essa síndrome. Ver os dois foi uma experiência negativamente inesquecível.

Pois hoje, indo para o trabalho, no início da rua onde moro, vi uma cena bastante incômoda. Parei o carro à espera de o farol abrir e, ao virar o rosto para a minha esquerda, vi no chão uma sombrinha cor de rosa, um cabo de vassoura, além de alguns pertences que certamente eram de quem dormia sob o edredon na larga calçada. Infelizmente, muito infelizmente, meus olhos já se acostumaram a ver pessoas dormindo na calçada. No entanto, hoje, foram surpreendidos ao notarem que o edredon não envolvia uma, mas duas pessoas: um casal. Para mim, a cara da miséria.

Praticamente à frente deles há um posto policial ativo 24h. Um pouco mais para baixo, uma igreja, uma escola particular, a Diretoria de Ensino da região, grandes restaurantes e padarias...enfim, aquele casal não estava isolado. Muita gente ou instituição dali, inclusive eu, poderia, de alguma forma, auxiliar aquelas pessoas. Não sei como nem quando. Talvez soubesse dizer o por quê e o para quê. Meus excessivos compromissos - que busco reduzir a cada dia - muitas vezes me impedem de uma ação mais efetiva.

Não se trata de procurar responsáveis nem culpados. Trata-se, talvez, (se se trata de alguma coisa) apenas de tentar deixar meus olhos não se viciarem nisso e me fazerem acreditar que é normal, que a vida é assim, "que um nasce pra sofre enquanto outro rir" ou que alguém vive(?) nessas condições porque tem algum tipo de dívida espiritual que tem de pagar ainda nesta vida, ou porque há um plano para a vida delas etc. Assim como a do morador de rua com síndrome de Down, esta também foi uma experiência negativamente inesquecível.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Novos fins



Quando fiz 40 anos, tive a felicíssima oportunidade de rever amigos que eu não encontrava havia mais de 20 anos. Embora muito ligados em nossa adolescência, a vida adulta foi nos separando aos poucos, sem, no entanto, diminuir a amizade, a consideração, a alegria de nossos contatos. Curiosamente, a vida de cada um de nós nos proporcionou experiências bastante semelhantes: um em Nova Iorque; outro no Rio; eu em São Paulo.

É bonito ver como os destinos (se assim podemos chamar) traçam ou são traçados com tantas diferenças e semelhanças. Fim de casamentos foi um dos assuntos presentes na nossa mesa. E isso me vem à mente agora ao ler notícias sobre Paulo Goulart, que faleceu aos 81 anos, depois de um sucesso imenso como cidadão, como amigo, como marido, como pai, como profissional. De todos esses papéis, chamou-me a atenção o fato de ter seu casamento sólido por longos 60 anos. Hoje, no dia de aniversário de seu filho mais novo, ele morreu de mãos dadas com a Nicete.

Admiro mesmo os casais que chegam a essa marca tão digna de ser exaltada, exposta, comentada, copiada, almejada, enfim. É a prova de que o diálogo, a compreensão, o convívio, o projeto de viver juntos é capaz de superar adversidades ora pequenas, ora grandes; ora muitas tão pequenas, que se tornam grandes; ora poucas, mas imensas nas consequências. A longa duração de um casamento é a prova de que, em um núcleo maior, a sociedade pode contornar dificuldades e seguir viva.

Óbvio que não cabe a nenhum de nós julgar por que certos casamentos se desfazem. Nem nos cabe investigar os porquês. Afinal, como cantava Renato Russo: "todos têm suas próprias razões". Há um tempo em que cada um fica "imerso em sua própria arrogância, esperando por um pouco de afeição". E a afeição não vem. Vem o fim. Vêm novos começos. Novos fins. Coisas da vida, que às vezes separa amigos.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Inveja



Acho que na vida todo mundo tem direito a tudo. Não vai nessa ponderação nenhum espírito de natureza comunista; vai apenas uma afirmação ainda irrefletida que mostra mais um desejo do que o resultado de um raciocínio profundamente elaborado. Este é apenas um lado da moeda. O outro é que direitos são conquistas. Não importa se todos que os detêm foram os mesmos que lutaram para obtê-los.

Todavia o nosso cotidiano infelizmente nos mostra o quanto o exercício dos nossos direitos, isto é, a vivência da nossa cidadania ainda é algo muito, mas muito mesmo, aquém do que seria o ideal. Nossa Constituição, por exemplo, propugna o fato de que moradia, educação, lazer, saúde, integridade - entre outros - são direitos dos quais deveríamos desfrutar. Nem preciso ir muito longe para desbancar isso. Simples: não preciso pegar estatísticas de gente sem casa, ou sem acesso a hospitais e escolas...; não; bastaria reafirmar os dado do INAF, segundo os quais há no Brasil quase 75% de pessoas alfabetizadas apenas funcionalmente.

Falta muita coisa pra essa gente toda. E pouquíssimos são aqueles que desconhecem essa informação. Do ponto de vista social, cultural, político (embora eu não ache que esses níveis sejam, assim, facilmente distinguíveis), falta de tudo para essas pessoas. Por essa e por outras razões, pessoas nesse estado, muitas vezes (sem generalizações inconsequentes) invejam a pequena parcela da população que não tem dificuldade alguma para obter bens móveis, imóveis e culturais em geral.

Nesse caso, em vez de alimentar alguma revolta frente às injustiças, o melhor ainda parece ser se colocar no meio do bar e pensar em um desejo de melhoria da situação. Sem deposição comunista de governos, sem revoltas egocêntricas no plano pessoal, o melhor me parece ser olhar para os erros e rir deles responsavelmente. Se isso for impossível, que se consiga conviver com as suas próprias faltas, independentemente do número de pessoas que tenham em abundância o que para outros é a expressão maior da escassez. 

terça-feira, 11 de março de 2014

Questão de olhar




Hoje no meu escritório atendi um garoto com o qual trabalhei um texto que falava sobre a estranha sensação que temos quando, mesmo com as pessoas fora do nosso campo de visão, sentimos que tem alguém nos olhando. Segundo pesquisadores, 94% da população dizem ter esta sensação e complementam: quando olham para trás se deparam com quem estava olhando.

Logicamente, entre os cientistas, há quem negue essa possibilidade. Ao negar, argumentam dizendo que isso acontece por uma confluência entre ilusão e coincidência. Desse modo, a pessoa que se sente olhada, em geral, está na frente de alguém e, por estar incomodada, faz algum movimento que desperta a atenção de quem está atrás. Após o movimento, olha para trás e acaba cruzando o olhar com o de quem ele alega estar sendo vítima de observação intensa.

Isso lembra bem o trecho final do texto de Fernando Sabino, intitulado "A última crônica", em que depois de ser intensamente observado em sua tímida comemoração de aniversário da filha de 3 anos num um botequim reservado para brancos ricos, um pai negro, orgulhoso de seu gesto, ergue seu olhar e o cruza com o do narrador. A força de sua conquista faz com que ele sustente seu olhar e assegure a naturalidade de sua presença ali. Dele e de sua família.

Nem todo mundo reage desta maneira. Muitos, em determinadas situações, justamente por se sentirem observados, por se verem alvo dos projéteis dos olhares alheios, por se surpreenderem emaranhados nos fios da rede que compõe uma armadilha inescapável, cedem, inseguros, à possibilidade de realizar sonhos, de provar a si mesmos que são capazes de superar limitações e olhar para a própria felicidade.


segunda-feira, 10 de março de 2014

Paixão nova



Tim Maia canta vários sucessos de que eu gosto muito, muito mesmo. Admiro esse artista que ajudou tanta gente e que fez sua própria história no Brasil e fora dele. Muitas vezes, uma história polêmica, é bem verdade, mas uma história de respeito até à própria irreverência que sempre o caracterizou. Em um de seus sucessos, ele canta que "paixão antiga sempre mexe com a gente". E cá estou eu, não para falar de paixão antiga, mas de paixão nova.

Há algum tempo, fui com minhas filhas adquirir um ukulelê. Para quem não conhece, ukulelê é o nome de uma guitarrinha havaiana que tem um som delicioso e é relativamente simples de tocar. Minhas filhas já tinham um, e com ele eu fui aprendendo os acordes para já poder tocar umas músicas. Agora, depois que comprei o meu, ele virou objeto de cabeceira. E não é exagero. Toco canções no ukulelê de manhã é à noite. A cada semana tenho gravado uma canção.

Evidentemente, dada a (baixa) qualidade do meu canto, essas gravações ficam comigo. O fato é que o ukulelê tem virado uma grande paixão para mim. Seu corpinho com curvas de violão, sua voz macia e delicada, seu tamanho reduzido, sua cor, sua leveza, seu trato refinado e sempre muito educado têm me levado ao estado de encantamento. Curvo-me ao prazer de tocar este instrumento, do mesmo modo que ele se dá a mim para que nós possamos fazer ecoar algumas canções. Coisas que se dão apenas entre nós dois.

Se Tim Maia dizia que "paixão antiga sempre mexe com a gente", estou eu aqui dizendo que "paixão nova, também". Experimentar isso nesses últimos meses tem sido algo um tanto agradável, porque em nossos encontros, que se dão predominantemente em minha casa, várias canções - inclusive do Tim Maia - têm sido ecoadas. A de hoje, que também gravei, foi "Leva"; como se disséssemos um ao outro: "Leva o meu som contigo leva, vem e faz a tua festa, quero ver você feliz".

domingo, 9 de março de 2014

Pessoas ensimesmadas



Não é incomum eu perceber alguma coisa somente depois de muito tempo que ela está ali. Avistei assombrado uma árvore grande e de tronco fino à beira do rio aqui na Ricardo Jafet. Recuso-me a acreditar que ela sempre esteve ali e que eu jamais a tinha visto. Mas a possibilidade é grande, bem grande, por sinal.. Duvido, igualmente, que alguém a teria transportado e plantado à beira de um rio que é margeado por uma avenida tão grande. É assim com construções (o que é absolutamente evidente) e é assim com aplicativos de telefone, por exemplo (o que é menos evidente).

Hoje, enquanto fazia meu alongamento para correr no Museu do Ipiranga, observei que no lugar onde sempre me alonguei passa um caminho de formigas. Vi quando me agachei pretendendo alongar a coluna. Chamou-me a atenção uma formiga que carregava uma folha, no mínimo, umas quatro vezes maior que ela. Parei o alongamento e fui dar a atenção que aquela formiga e toda a sua leva de formigas sempre mereceram. Devo ter pisado muitas delas em outras oportunidades. Elas, por sua vez, nunca me incomodaram.

Findado o alongamento, fui correr e, em um raro momento em que olhei para cima, vi que à frente do palácio há alguns pilares em cujo topo fica esculpida a imagem de uma águia. Belíssima, por sinal. Assim como às formigas, nunca a tinha reparado. Exuberantes, como se fossem as sentinelas do palácio, lá estão elas. Imponentes. Imóveis. E, até hoje, pelo menos, invisíveis. Domingo que vem vou saudá-las silente. Assim como as formigas, elas nunca puseram os olhos em mim. Nem eu nelas. Embora elas sempre estivessem ali.

Não sei, não sei. Às vezes temo que, assim como as construções, como árvores, como formigas e esculturas, que sempre estiveram onde estão, mas que nunca as vimos, muita coisa esteja passando intocada pelos nossos olhos. E nós não damos mesmo por elas. O pior é se isso estiver acontecendo também com pessoas. Podem estar passando invisíveis ao alcance de nossos olhos. Há pessoas que andam ensimesmadas. Esperam mais ser vistas do que verem. Daí, num gesto de estranhamento, se deparam com o que ou com quem sempre esteve debaixo de seus olhos.


sábado, 8 de março de 2014

Moscas, males e nadas



Lembro com muitas saudades do carinho que minha avó tinha por mim (cafunés no colo), do modo como me protegia (se mexerem com você, vão estar mexendo comigo!), das muitas broncas que me deu (por jogar bola descalço e me ferir quase sempre)... Lembro de sua voz cantando ao som do arrasto dos chinelos ("Pisa na fulô, mas não maltrate meu amô"). Agora o que eu lembro quase sempre é de uma lição que eu deveria ler todos os dias ao acordar e ao dormir: dizia ela, muito sabiamente, que Deus nos deu dois ouvidos e uma boca justamente para ouvirmos mais e falarmos menos.

O ditado popular já ensina muita gente que tem ouvidos para ouvir. Minha avó - finada Dona Elvira - dizia um: "Quem fala demais dá bom dia a cavalo". Eu nunca entendia aquilo fora de sua literalidade. Só pude viver com minha avó um pedaço da minha infância. Outro ditado veio me esclarecer aquele. Quem de nós não conhece o famoso "Em boca fechada não entra mosquito"? Apesar do nojo que o ditado gera, é uma grande verdade. E no nojo está sua força: o mosquito não é para a boca, ainda mais se consideramos os lugares abjetos onde costuma pousar. Metaforicamente, há muita coisa nojenta que está na boca de muita gente - e não deveria.

Pepeu Gomes - evidentemente em outro contexto - já cantava nos idos anos 80 que "você pode comer baseado baseado em que você pode comer quase tudo. Porque o mal nunca entra pela boca. O mal é o que sai da boca do homem". Sábio Pepeu - que já foi considerado um dos maiores guitarristas do mundo - em época de Ditadura, de proibições, queria se opor àquilo que de mal se falava.

Nos anos 90, Renato Russo com sua Legião Urbana cantava a música Índios, um de seus muitos sucessos de frases de efeito que têm o poder de guiar comportamentos. Nessa música, ele diz que "fala demais quem não tem nada a dizer". E, ao que parece, também outra verdade (mas não absoluta, como toda verdade). Às vezes, mesmo cientes disso, deixamos escapar moscas, males e nadas de nossa boca. Saudades de D. Elvira.