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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Privilégios

"Por você, eu dançaria tango no teto; eu limparia os trilhos do metrô; viajaria a pé do Rio a Salvador". Esses versos do Frejat - do Barão Vermelho, na verdade - retratam o quantum de esforço que poderíamos dedicar para conquistar algo ou alguém; para se obter uma folga, um prazo, uma vantagem, um presente, um privilégio. Percebo que nós já somos tão cobertos de privilégios, que querer mais fica parecendo até heresia.

Outro dia, saí do meu escritório a um minuto antes de dar o horário em que o prédio fecha diariamente. Eram 21h59 quando entrei no carro na garagem do prédio. Eram 22h05 quando desliguei o carro na garagem do prédio onde moro. Inacreditáveis 6 minutos me separaram do trabalho até minha casa, o que - sem a menor sombra de dúvida - é um privilégio que muita gente busca, ainda mais morando em São Paulo, onde é cada vez mais comum levar 6 minutos para conseguir sair da garagem de casa.

Agora há pouco, entre uma centena de prova e outra (esse não é um privilégio que persigam...), parei a correção para ver um pouco de TV, depois de algum alongamento. Como sempre, Sportv. Era um programa de fotografia no esporte. Enquanto via sem um envolvimento sério com o que se mostrava, fui atacado com uma frase de um fotógrafo exercendo o seu trabalho pendurado a uma pedra altíssima de onde extraía imagens privilegiadas com sua potente câmera: "este é um escritório que muita gente queria ter" - e abria sua câmera para o céu aberto cobrindo lagos, árvores e rochas.

Poder estar aqui diante do computador, protegido do frio, da fome, da sede e de outras ameaças, escrevendo para mim mesmo, é um tipo de privilégio semelhante àqueles que muita gente despreza, por inseri-los no rol das coisas comuns. Não. Isso não é qualquer coisa. Embora não haja para mim privilégio maior do que poder olhar para minhas filhas todos os dias e abraçá-las, cada momento do meu dia, é, sem a menor sombra de dúvida, um privilégio impagável. Por coisas simples assim na vida da gente, vale a pena qualquer esforço. Até mesmo viajar a pé do Rio a(o) Salvador, para agradecer a Ele cada privilégio.

domingo, 29 de setembro de 2013

Toneladas de amor em palavras

"Sua presença me dá mais que todo mel que eu ousaria querer" é um verso de Chico César que me ocorre agora para sustentar uma ideia que está batendo na minha cabeça desde que saí do teatro ontem, onde assisti à peça "Amor em Braille", da qual minhas filhas participam. Dirigida pela sempre brilhante Marlene França, o espetáculo faz emergir milhares de toneladas de amor em palavras.

A sensação que eu vivenciava ao final da peça (é claro, além de estar - como sempre - absolutamente encantado pela atuação das minhas filhas cantando, declamando... atuando) pode ser comparada à que temos sempre que viajamos para o Sul, para Gramado, por exemplo, e nos dirigimos para tomar um café colonial. Um café daqueles que uma abundância de alimentos deliciosos nos são servidos, como se fossem todos inegavelmente necessários e necessariamente inegáveis.

Pode também ser comparada a outra sensação que é, para mim, absolutamente fascinante - sobretudo, quando acompanhado de minhas filhas. Refiro-me à sensação de estar em alto mar, em passeio de escuna, por exemplo, e, do alto dela, saltar para imergir e submergir naquela imensidão de mar que me abraça e me envolve como se fosse a única coisa que existisse além de mim. Um mar que existe comigo, que existe para eu estar nele, que me faz existir com (por e para) ele...

Era como me sentia ontem desde que entrei e me acomodei na poltrona do teatro: a cada segundo era-me servido o mais saboroso e variado amor, sustentado em trechos de poemas e de músicas que fazem parte da minha vida. Ao mesmo tempo, eu me sentia inundado por um sentimento que me envolvia como ondas de mar e se mostrava, sob várias faces, infinito; como algo que existe comigo, para eu estar nele, que me faz existir com (por e para) ele. Sem dúvida, a peça me deu muito mais de todo "mel que eu ousaria querer".

sábado, 28 de setembro de 2013

Rock in Rio e nas matinês

"Eu enfrentava os batalhões, os alemães e seus canhões, guardava o meu bodoque e ensaiava o rock para as matinês" são versos iniciais de Chico Buarque para a música João e Maria, que conta os sonhos de um menino com a "princesa que ele fez coroar, que era tão linda de se admirar". Por certo, uma música encantadora que, num mundo de faz-de-conta mostra o embate entre o estar próximo e o estar distante, entre o que é sonho e o que é realidade.

Nesse mundo de faz-de-conta muita gente vai tentando ligar as coisas que se mostram separadas no cotidiano. Muita gente que domina muito uma determinada área do conhecimento e tem verdadeira admiração por outra, para a qual não demonstra muita habilidade, embora o queira (e muito). E nesse estado de uma aproximação menor que gostaria, lamenta-se e até reclama de si mesmo.

É bem meu caso. Já disse aqui inúmeras vezes que um dos meus desejos na vida é saber cantar. Talvez todos os dias eu lide com a informação interior segundo a qual esta não é uma arte para mim; ou que eu não seja artista para ela. Mas é interessante que eu gostaria muito que fôssemos um para o outro. Talvez estejamos mais ligados pela minha limitação do que por um excelente domínio que eu pudesse vir a ter.

É provável que seja assim também na relação entre as pessoas. Umas tão iguais, outras tão diferentes. Umas tão iguais querendo ser como outras que lhes são tão diferentes. Irmãos que, apesar da mesma criação, são tão distintos. Profissionais que, apesar de mesma formação, são tão díspares. E todos desejando o modo de o outro ser... Acredito que essas pessoas não sejam tão diferentes assim. Mais: nem acho que sejam distantes assim, pois é esta diferença que as une, que as torna mais desejosas umas das outras. Nem é preciso enfrentar batalhões e seus canhões. Basta continuar ensaiando o rock para as matinês.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Uma luz

"Quando tudo está perdido, sempre existe um caminho. Quando tudo está perdido, sempre existe uma luz", cantava Renato Russo em um de seus mais tristes discos - comentário feito por ele mesmo - na música A Via Láctea.. A melodia é belíssima, simples e bem trabalhada. A letra é de derrubar o sujeito que estiver um pouco deprimido ou que tiver tendência para isso.

Não a uso aqui para tratar do sentido negativo dela ou para valorizar tristeza (como ele mesmo diz: "hoje a tristeza não é passageira..."). Venho para dizer que realmente há pessoas assim: com uma tendência autodestrutiva grande, gente que tem gosto pelo gosto da tristeza, gente que chama a tristeza para sentar-se à mesa ou para deitar-se à cama em companhia tétrica regada com lágrimas silenciosas.

Por outro lado, tem muita gente que sempre vai enxergar o que tiver de ser (e para ser) enxergado.Vai ter gente que, mesmo diante diante da maior tristeza, mais se encante com a alegria por vir; gente que entende bem o período de tempestade e sua subsequente calmaria; gente que sabe lidar com a escuridão - quando procura outros órgãos do sentido para continuar a luta diária pela vida. Gente que não enxerga só o imediato, gente cuja visão é da janela pra fora.

Independentemente de tudo estar pedido neste mundo, na vida das pessoas ou de uma só pessoa, sempre existe um caminho, sempre existe uma luz. É na direção dessa luz que os pés devem levar. É o brilho dela que deve estar sob o foco incisivo do olhar. Como cantava o JQuest: "E se quiser saber pra onde é que eu vou: pra onde houver sol, é pra lá que eu vou".

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Irrepetibilidade

"Se eu pudesse voltar a viver novamente, trataria de ter apenas bons momentos, porque, se não sabem, disso é feita a vida: apenas de momentos", afirma Don Herold em um texto que, por muito tempo, foi atribuído ao brilhante escritor argentino Jorge Luis Borges. É engraçado como essa falha de atribuição de autoria sempre volta à tona. Aliás, muitas coisas voltam à tona na história.

Lembro bem que uma das primeiras vezes em que me senti com alguma qualidade para discutir algo em nível filosófico foi em meio a uma conversa sobre história (História, Estória) e a possibilidade de ela ser linear o cíclica. E o que estava em jogo era justamente se, ao longo da história, os fatos se sucediam linearmente de forma singular e irrepetível ou se eles, de tempos em tempos, voltavam numa repetibilidade cíclica.

Vê-se, por exemplo, um conjunto de estilos de vestuário que se repete de vez em quando; alguns estilos musicais; algumas práticas sociais; algumas crenças. Até na nossa história pessoal mesmo, tão curta, tão breve, tão efêmera, vemos certas repetições que, como sina, insistem em se fazer presente como um eco, como uma propaganda, como um argumento que vem várias vezes travestido de originalidade, mas essencialmente igual.

Quando são coisas ruins, muitas vezes não há controle, até porque o grau de volição inconsciente pode ter grande implicação nisso. Entretanto, longe de querer praticar um hedonismo barato, quando são coisas boas, vale a pena tomar a rédea da história e fazer alguns fatos terem vez novamente, a fim de que sensações, emoções e sentimentos que normalmente acompanham os fatos renasçam.

Com-viver

"Deixamos pra depois uma conversa amiga, que fosse para o bem, que fosse uma saída" são versos de uma banda gaúcha, a meu ver, pouco valorizada. Não sei também o valor dela, afinal são tantos os critérios para se considerar boa uma banda, tantos que a gente até esquece de julgar criteriosamente e apenas ouve, independentemente de se estar ouvindo algo melhor ou pior que.

Um pouco assim na vida, eu acho. No convívio do dia a dia, a gente tem a mais plena das certezas de que algumas coisas estão sendo feitas apenas por fazer. Daí a gente se habitua a elas e vai vivendo como se fosse obrigado ser daquela maneira. Talvez seja assim com os caminhos que fazemos de um lugar para outro: às vezes nos vemos fazendo um caminho por puro automatismo. Vamos para um lugar dirigindo-nos para outro. Caminhos devem ser vividos; não apenas passados.

Ocorre isso também no trabalho. Assim como há muita gente (e essas são maioria, com toda certeza) com as que temos pleno prazer em trabalhar - pessoas que fazem diferença no dia, seja com seu espírito colaborativo, seja com seu bom humor etc.- também há algumas com as quais a gente convive apenas por conviver, aguardando o dia passar para passar apenas, uma vez que o contato com elas e o não contato com elas não fazem a menor diferença.

As pessoas sabem, as pessoas sentem. As que se relacionam com consciência promovendo o bem, gerenciando as relações e o trabalho, criando ambiente apropriado e iluminando o dia, sabem que estão fazendo o bem e têm prazer naquilo que compartilham. Sabem "com-viver". Elas não deixam pra depois uma conversa amiga que seja para o bem.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Comportas da ira e mergulho no amor

"Quando eu dei por mim, nem tentei fugir do visgo que me prendeu dentro do seu olhar", são versos de uma música tão linda quanto eles: Todo Azul do Mar, na voz de  Flávio Venturini (embora muitos outros a tenham regravado). Esses versos vêm  a propósito de um comentário que uma moça, caixa de supermercado, fez para mim, a respeito de uma situação súbita que ela presenciou hoje em seu trabalho: uma quase agressão, por conta de um motivo (para muitos) absolutamente fútil.

Na hora em que ela me disse aquilo, mesmo sem entender a razão de tê-lo feito (já que falava com outro funcionário do supermercado), pensei um pouco e lhe disse que, a meu ver, a causa da quase agressão não havia sido necessariamente aquela de que se tomou conhecimento. Acrescentei que aquilo teria sido apenas "a gota d'água". Como ela deu sinal de concordância com a cabeça e lançou o mais que esperado "É mesmo", completei dizendo que a gente nunca sabe em que ponto de seu limite as pessoas estão.

E é fato. Tanto para o bem, quanto para o mal. Nossas reações imediatas são, no mínimo, interessantes e merecem reflexão. Parece que nos acostumamos a  ter respostas emocionais e físicas sempre iguais para os mesmos acontecimentos - mesmo em contextos diferentes. Parece existir um padrão de comportamento repetitivo que, quando subitamente quebrado deixa a pessoa tão fora de seu eixo, que ela se torna capaz de tudo: abrir as comportas da represa da ira ou mergulhar no oceano infinito do amor.

O que somos, afinal? Esse conjunto de ações que se repetem ao infinito (e que dizem ser nosso jeitão, nossa personalidade) ou somos esse ser explosivo, que se entrega com a mesma voracidade ao ódio e ao amor? Sim, da mesma forma que cedemos às irrupções da ira, também escancaramos as portas para gestos de amor. Não acho que sejamos um ou outro, mas um e outro. Tanto é que ambos são possíveis, e às vezes, nem dá pra tentar fugir".

domingo, 22 de setembro de 2013

Mais um

"Enquanto o tempo acelera e pede pressa, eu me recuso, faço hora, vou na valsa. A vida é tão rara", canta Lenine, na música Paciência, tão cara pra mim e tão cheia de sabedoria. Eu, como bom mineiro, tenho tanta paciência que chego a me irritar com isso. Eu, como alguém cujos batimentos cardíacos são, em média, um por segundo, sou um sujeito que vê a vida passar no ritmo dela, que faz a vida passar no ritmo de que eu preciso. Mas sempre paciente. Sempre entendendo que por trás das coisas tem coisas que eu não vejo.

É meu aniversário hoje. São 45 anos nas costas. 45 primaveras (literalmente, porque amanhã se inicia a primavera). 45 é três vezes a idade de minha filha mais nova. Esta data fecha um signo, fecha uma estação... de modo que só posso me sentir num período de transição. Não sei bem pra onde, mas tenho a certeza de que estamos todos em transição. É certo que sou do tipo de gente que planeja os próximos 2, 5 e 10 anos, na doce ilusão de que saberei onde e como vou estar. Mas a vida, como sei bem, ora derruba ora levanta, sempre fazendo questão de interferir, de interagir com nossos planos.

Sou completamente grato pelo que a vida me deu até aqui. Acredito, muito piamente, que Deus é bom demais para comigo (como já disse tantas vezes aqui). Só o fato de eu ter as filhas que tenho já vale uma vida. Não. Vale mais: vale uma eternidade. Isso somado à minha família e aos meus amigos vai dar como resultado, justamente, a vida. Dá, justamente, 45 anos de existência.

Claro que estou cheio de "-ites" e "-omas", os quais de vez em quando me dão uma limitada que eu não gosto muito. Afinal, ninguém gosta de não jogar e de não enxergar direito. Mas, meu!, 45, velho! Tenho plena certeza de estar nos primeiros anos da segunda metade da minha vida. Vamos ver o que consigo produzir daqui pra frente. Sigo fazendo hora e indo na valsa, porque tenho paciência e porque a vida é rara.

sábado, 21 de setembro de 2013

Quem manda

Desejo que você ganhe muito dinheiro, pois é preciso viver também. Mas é preciso que você diga a ele, pelo menos um vez, quem é mesmo o dono de quem", canta Frejat, com seu vozeirão característico que ficou conhecido, principalmente depois da morte do Cazuza e da reestruturação pela qual a banda Barão Vermelho passou, a partir da saída de seu principal nome.

À sua época, Cazuza revolucionou o rock nacional com suas letras ácidas, irônicas, provocativas e sempre contundentes. Cantar era tudo o que ele gostava, movimentava multidões, botava a letra de suas músicas na boca de todo mundo. Das coisas mais simples ("segredos de liquidificador"), passando pelas mais sociais (ideologia: eu quero uma pra viver) e chegando às de cunho pessoal (eu não posso causar mal nenhum, a não ser a mim mesmo). Cantar e mexer a realidade com seu canto era o que estava em primeiro lugar para ele.

Outros há que colocam o trabalho em primeiro lugar. Asim, num culto velado, diários, frequante, o trabalho ocupa a primazia e acaba determinando todos os demais compromissos do dia. Mesmo quando acolhe amigos ou quando faz algo que é clara demonstração de humanidade, não consegue se livrar da culpa por não estar trabalhando. E, pior: quando está trabalhando, fuca pensando se não poderia estar aina mais um tempinho com seus familiares. Ou por que não está fazendo algo efetivamente para si.

Há, no entanto, pessoas cuja felicidade está fora de si: em um carro, um apartamento; um aparelho eletrônico avançado...enfim, qualquer coisa que as deixe centradas em si mesmas para que sejam vistas e elogiadas. Para elas, esses objetos - a despeito do fato de serem fugazes - são sua segunda alma e, como tal, são colocadas em primeiro lugar. Em termos de primazia, muito provavelmente, diminuem-se para atender aos caprichos. Para essas pessoas, ainda não é claro quem é que manda em quem.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Pouco muitas vezes. Muito uma vez.

"Os sonhos mais lindos sonhei. De quimeras mil um castelo ergui. E no teu olhar tonto de emoção com sofreguidão mil venturas previ" são versos imortalizados na voz de Elis Regina; aliás, dizer que o som que ela emite é apenas "voz" é quase um reducionismo. Poucos como ela conseguem interpretar tão bem uma música. Entre seus lábios, a música tem outra vida.

Nem todos foram agraciados com esse dom maravilhoso e angelical que é o de cantar. Poucos conseguiram se dedicar tanto quanto tiver sido exigido para cantar bem, de modo afinado, forte, com emissão, com espírito, fazendo encantar a si mesmos e aos que porventura se dispuserem a ouvir. Pessoas assim vão fazendo seus castelos rodeados e recheados de quimeras. Mais de mil.

Assim como esse sonho, outros tantos povoam a mente das pessoas, que seguem a fim de conseguir realizá-los, ainda que por pouco tempo, ainda que parcialmente, ainda que só para dizer que determinada experiência foi efetivamente vivida. Assim, mais ou menos como cantava Cazuza, em "pequenas porções de ilusão". Por essas e por outras, vão-se somando quimeras e vai-se vivendo.

Sim, sim. Sei lá se as coisas melhores são as que se vive por longo tempo, lentamente - e uma só vez; ou se são as que se vive por pouco tempo e rapidamente - mas várias vezes. Nem tudo é como alimentação, prática cuja recomendação é de se realizar pouco várias vezes. Nem tudo é como ter um nome - de uma vez, para sempre. A justa medida entre o muito e o pouco, o lento e o rápido, o longo e o breve... taí algo difícil de achar. Certamente uma das mil quimeras.

Amigos e rocks rurais

"Eu quero uma casa no campo, onde eu possa compor muitos rocks rurais. E tenha somente a certeza dos amigos do peito e nada mais" são versos de uma música que já citei aqui. Não me lembro mais a propósito de quê. Sei que agora a retomo para destacar o aspecto do "amigos do peito". Essa é uma das poucas coisas que realmente temos na vida e da qual temos de cuidar muito bem.

É claro que tem gente que se faz amiga das pessoas e, por um tempo, dá todas as demonstrações de amizade sincera. Mas, de uma hora pra outra (ou "a um segundo..."), passa a dar brecha para inconfidências, distratos, quebras de confiança... até chegar ao máximo que qualquer relação pode suportar: a falta de respeito.

Ouvi relatos de gente que foi "amiga" por 10 anos, mas não hesitou em prejudicar a amizade em troca de uma promoção que viria, justamente, para o "amigo", que foi vítima de uma bela "rasteira". Tem tantas amizades que, outrora tão afinadas construtivas e modelares, hoje são mudas, dissonantes e destrutivas. Tantas palavras sinceras e doces que se tornaram turvas e amargas...

A poucos dias do meu aniversário, é muito bom perceber que estou rodeado de amigos; pessoas a quem respeito muito e pelas quais sou muito respeitado; gente que ouve minhas besteiras e dá risada (pra não perder a amizade, claro); gente que fala bobagem e que discute assuntos de grande abstração; gente comprometida consigo mesma, com os outros e com a vida; gente que pauta sua vida no respeito. Ainda mais quando se trata de amigos do peito, com quem posso compor rocks rurais.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Palavras de Reis e Plebeus

"Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência a vossa! Todo o sentido da vida principia à vossa porta; o mel do amor cristaliza seu perfume em vossa rosa; sois o sonho e sois a audácia, calúnia, fúria e derrota..."  são versos de Cecília Meirelles que integram o Romanceiro da Inconfidência, texto em que, valendo-se dos recursos poéticos, consegue contar uma versão do que teria sido a Inconfidência Mineira. Não conheço esses versos cantados. Mereciam...

Sim, porque as palavras de vez em quando pulam em cima da gente e provocam em nós coisas que fazem mais bem que um dia de sol; mais bem que mergulho em alto mar, saltando de escuna; mais bem que remédio; mais bem que namoro; que detona o tédio e converte o choro não em uma, mas em centenas de milhares de  risadas - risadas que as próprias palavras não conseguiriam traduzir.

Quem lê peças shakespeareanas, Henrique III, por exemplo, encontra discursos eivados de ânimo, transbordando vida e energia, persuadindo até o mais covarde a se sentir forte como o mais alto guerreiro, a fim de defender ideias, valores, condados, nações. Mas nem toda palavra precisa ser proferida da boca de reis para fazer a vida brotar e irromper os grilhões do conformismo ou da resistência.

Às vezes, palavras recheadas com o espírito da vida saltam da boca de plebeus. Vêm-nos por exemplo da boca de colegas de trabalho dos quais jamais esperaríamos ouvir; às vezes vêm de  recém-conhecidos que, por alguma razão se sentem motivados a dizer e, simplesmente, dizem... sem saber que estão injetando vida com as palavras. Às vezes vêm de filhos - uma fonte onde muitos pais não depositariam a esperança de ouvir - e parecem vir com a força da vida que foi exigida para fazê-los existir. "Ai, palavras, que estranha potência a vossa!"

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Gestos

"Eu digo 'oi' e ela nem nada. Passa na minha calçada. Dou 'bom dia' e ela nem liga", são versos cantados por Seu Jorge, na música Mina do Condomínio, que conta o engraçado relato de um rapaz que namora uma moça que não sabe que é namorada por ele. Um fato desses, com toda certeza, é, no mínimo passível de estranhamento pela moça enamorada à revelia. E, por conta disso, pode gerar reações não esperadas.

Mas há vezes em que somos surpreendidos por reações completamente inesperadas e, ao menos a nosso ver, totalmente sem justificativa. Daí ficamos extasiados, com cara de perplexidade e uma imensa interrogação desenhada no olhar e no contorno do rosto, que, em si mesmo, se torna a expressão de um grande texto incapaz de se traduzir em palavras.

Tem gente que faz questão de ser grosseira e, muito propositadamente, insiste em marcar o território da sua ignorância, como se seu gesto de extrema indelicadeza e falta de educação fosse a ostentação de uma inigualável condecoração que pudesse colocá-la numa espécie de pedestal regado com o ouro da arrogância, a prata da prepotência e o bronze da petulância.

Mas essa gente é minoria. São pessoas cuja honra e nobreza são aumentadas e espelhadas à baixeza e à vilania com que se vestem. É lamentável. A elas nossa piedade, nossa pena. A elas, a nossa postura que nos conduz ao caminho daquilo que vale a pena e daqueles que enobrecem as horas da existência e nos fazem crer que com pequenos e construtivos gestos, como 'oi' e 'bom dia' fazem toda a diferença. 

domingo, 15 de setembro de 2013

A vida e o instante

"Será que existe alguém ou algum motivo importante que justifique a vida ou pelo menos esse instante?", canta a mais do que maravilhosa Paula Toller. Sua beleza inconteste e sua voz limpa e afinada parecem destoar de versos como esses que usei para abrir esta reflexão. O título da música em que estão esses versos é Lágrimas e Chuva. Tão bonito quando ela canta que "lágrimas e chuva molham o vidro da janela"... é o claro sentimento de angústia, de aperto de dentro pra fora, de fora pra dentro.

É justamente nessas horas, que a gente precisa saber que tem sempre uma pessoa para abraçar e dessufocar. Sei não, acho que todo mundo passa por isso um dia. Deve ser normal que, por algumas vezes na vida, chorem o eu interno e o eu externo. Um dia em que a janela fique molhada tanto pelo lado de dentro quanto pelo de fora. Sim, sim. Nem todo mundo reage como o personagem de Michael Douglas no filme Um dia de Fúria.

O que se espera, naturalmente, é que dias como esses aconteçam em infinitamente menor quantidade do que os dias em que a gente chora de alegria. Uma pena que o ser humano tenha a tendência de supervalorizar problemas, tristezas etc. em detrimento dos acontecimentos incomensuravelmente melhores. Algumas pessoas que já agem assim por natureza, tendem a criar situações em que venham a se sentir dessa maneira. Tendem a escolhas autodestrutivas.

Tanto essas quanto as que são acometidas por surpresas trágicas da vida precisam de pessoas ao seu lado para lhes mostrar que há mais coisas boas do que ruins, para lhes fazer ver que o cinza pode ser agradável, para lhes fazer sentir que o escuro e o frio podem ser bem aproveitados, para lhes fazer ver, enfim, que há pessoas e motivos importantes que justifiquem a vida e esse instante.

Há um segundo

"Há um segundo, tudo estava em paz", canta Hebert Viana, do Paralamas do Sucesso, na música Cuide Bem do Seu Amor. O próprio Hebert pode dizer isso com muita propriedade, tanto pela poeticidade do que diz para uma música quanto, sobretudo, pelo fato de ele ter estado entre a vida e a morte. Quando tudo estava em paz, literalmente voando com sua mulher, um acidente: ambos despencaram. Ela morreu. Ele ficou tetraplégico.

Poderia seguir com Lulu Santos, para quem, "tudo muda o tempo todo no mundo. Não adianta fugir nem mentir pra si mesmo". Mas correria o risco de ser um lugar-comum - o que, para mim, é o de menos, uma vez que realmente as coisas mudam e mudam o tempo todo. A gente muda e muda o nosso mundo. Sem a menor sombra de dúvida, também muda o mundo, que muda a gente.

Camões, também falou, e muito bem, da mudança. "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda o ser, muda a confiança", dizia o poeta português, na parte lírica de sua obra, ressaltando principalmente o lado ruim das mudanças ("Continuamente vemos novidades, diferentes em tudo da esperança"). E não estava errado o clássico poeta, se considerarmos sua vertente predominantemente narrativa.

Os poetas não se decidiram se falam de si ao mundo, ou se falam do mundo a si mesmos. O fato é que hoje, quando tudo estava em paz, há um segundo, de repente um dos amigos sofreu um infarto. Era hora de mudar o foco - e tínhamos minúsculos segundos para agir: em vez do churrasco, da cerveja e da conversa super agradável, a massagem, o medicamento e o telefonema para os médicos. Bastou um segundo para nos vermos todos envolvidos na dura missão de devolver a paz e de gerar condições para que tudo voltasse a estar inteiro.

sábado, 14 de setembro de 2013

Meus pés, minha carruagem.

"But, while I'm gone, I mean: Everything is gonna be alright" são versos famosíssimos de Bob Marley (seja bem-vindo ao blog, Marley), versos de encorajamento, de conscientização, como a maioria dos que integram as letras desse ícone mundial do reggae. Me lembro agora de Gabriel, O Pensador (acho que na música Loraburra) que citava "adoro reggae, mas não sei o que Bob Marley diz".

Tem isso na vida. É possível mesmo curtir o estilo, a melodia, a levada de uma música e não se ter a menor ideia do que está sendo cantado. Quantos de nós já não vimos pessoas que, na sua simplicidade e no seu desconhecimento da língua, arriscam-se a cantarolar em Inglês grandes sucessos da música mundial. Felizes, dizem palavras incompreensíveis e, provavelmente, inexistentes. Mas cantam como quem tem certeza de que tudo dará certo. "Everything is gonna be alright".

Gosto desses versos do Marley, porque quem canta, não está cantando parado, vendo o mundo passar. Nem parado vendo o mundo que passou. Muito menos, de olhos fechados. Nem de pés parados. Não, os versos dizem que enquanto está no caminho, o sujeito diz pra si mesmo que tudo vai dar certo. Quer dizer, o cara vai caminhando da direção daquilo que crê ser o certo para si, aquilo que ele pode e se motiva a conseguir.

É assim que a gente deve seguir. Simplesmente seguindo. Se nós fôssemos super-heróis, poderíamos dizer "Para o alto e avante" ou "Ao infinito e além". Mas não somos. Acho que nem seremos. Pouco importa. A vida segue. A gente segue. "Caminhando e cantando e seguindo a canção", afinal "My feet are my only carriage". É só com os pés que a gente segue, pois "everything is gonna be alright".

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Di - versão

"Diversão, sim. Diversão pra mim. Às vezes qualquer um faz qualquer coisa atrás de diversão. Às vezes tudo isso só aumenta a angústia e a insatisfação", canta Paulo Miklos - esse multiartista do Titãs, com sua voz contundente e apropriada para a verve com que canta as músicas da banda. Suas representações são sempre sui generis.

Tenho aqui em casa um DVD maravilhoso que comprei enquanto esperava um super atrasado voo no aeroporto de Salvador, quando ainda fazia pós-doutorado por lá. Uma das melhores compras que fiz: um DVD do Cidade Negra, chamado Di Versão - cuja proposta é justamente apresentar uma segunda versão, uma "Di (=2) versão" para uma série de músicas que, por muito tempo, só conhecíamos na voz e no estilo de seus intérpretes originais.

Um aluno me emprestou hoje uma revista que trazia como reportagem, dessas de infográfico e tudo, a importância da diversidade nas empresas, em sua rotina, em seu planejamento, em sua visão estratégica etc. O texto mostrava como o pensamento "di-vergente" é capaz de enriquecer as opiniões e pontos de vista, pode nos fazer enxergar através de nossas próprias janelas.

Quando isso não é entendido dessa maneira, quer dizer, quando é visto como uma atividade necessariamente contrária, as relações - em vez de crescerem, progredirem etc. -  passam a se desgastar e a resultar em animosidades completamente desnecessárias. É preciso se divertir com o divergente, a fim de não se tornar vítima da angústia e da insatisfação.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

É a mãe!

"Mulher, mulher... na escola em que você foi ensinada, jamais tirei um 10. Sou forte, mas não chego aos seus pés", canta Erasmo Carlos o refrão de uma de suas músicas mais conhecidas... uma verdadeira homenagem à mulher, que se divide (só em casa) entre os papéis de mulher e de mãe.

Tem tanto estereótipo sobre mãe, que a gente fica até atordoado. Dizem, por exemplo, que mãe  não erra. Olha, pode parecer loucura, pode ser coincidência, pode ser apenas uma fala de experiência... sei lá... pode ser um monte de coisas que a nossa imaginação não consegue captar com nitidez. Mas uma coisa é fato: são pouquíssimas as vezes em que um conselho de mãe não dá certo. Ela sempre acerta quando manda levar o guarda-chuva, quando manda fazer uma coisa ou deixar de fazer outra...

Dizem também que mãe só tem uma. E é mesmo, só uma. É ela quem gesta a gente por tanto tempo naquela paciência de Jó, vendo e sentindo a gente crescer na barriga dela, alterando a forma do seu corpo, resistindo às náuseas aparentemente intermináveis, inchando a cada mês, vendo seus movimentos cada vez mais limitados... tudo isso, sem contar o que ela passa no parto - seja ele natural, cesariano ou qualquer outro. A experiência da maternidade é singular e, por mais que os pais participem bastante, mãe é mãe.

Hoje, ao chegar cedinho à escola, ainda no estacionamento movimentado em razão da chegada de professores, vi uma colega professora (e mãe de um lindo casal) quase correndo com mochila numa mão, seu material na outra e o filhinho atrás, atônito, sem entender nada. Ela tentava evitar o que poderia ser um acidente, pois não tinha a filhinha sob seus olhos, seus cuidados. A espertinha tinha saído na frente sem ser notada pela mãe. Era um desespero contido, um olhar angustiado que não via a filha no meio daqueles carros todos. Era mais do que evidente a tensão em seu rosto. No entanto, seu alívio foi grande, quando encontrou a pequena olhando o próprio reflexo na porta de um carro, ajeitando seus cabelinhos... 

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Sem palavras sem canções

"Eu queria poder te dizer sem palavras. Eu queria poder te cantar sem canções", são versos bonitos, poéticos, encantadores de um poeta mineiro, chamado Vander Lee. Com certeza já o citei aqui, não sei se exatamente com esses versos, mas já o citei aqui. Me encantam porque "dizer sem palavras" é tão próximo de "dizer cem palavras", quanto porque canções são feitas justamente para cantar, mas o eu-lírico quer cantar sem canções (sem contar a possível troca de sem por cem).

Esses versos me vêm à mente em razão de uma experiência que tive hoje. Antagônicas experiências que me fizeram pensar sobre o falar, pensar sobre o que falar, pensar sobre por que falar, pensar antes de falar e pensar em falar hoje aqui no blog. A gente não tem mesmo uma clara noção do imenso bem que é essa faculdade de falar, e muito menos do poder que temos quando praticamos o exercício da fala. Poder expressar o mundo e poder expressar o nosso mundo por meio da fala é um privilégio, um dom, um poder...

Havia levado meus alunos para a biblioteca da escola, a fim de fazê-los ler crônicas não só para entrarem em contato com o gênero, mas também para poderem escrever sobre as crônicas em si e, sobretudo, para falarem acerca dos temas retratados nos textos. Apesar de a maioria aproveitar bem a oportunidade, alguns insistem em falar fora de hora, falar o que não se deve, do modo como não se deve... Aí entra a gente para ensinar que falar não é coisa que se desperdice.

Em meio à atividade e enquanto eu passava entre os grupos orientando-os, fui chamado pela bibliotecária que queria me falar sobre uma aluninha, muito novinha - talvez do 5ºano - que, se no ano passado falava muito pouco, neste ano já não fala nada. Ela pediu que eu fosse estar um pouco com a menininha e tentar conversar com ela. Tentei muito, de muitas formas. E ela interagiu comigo. Atendeu a tudo que pedi. Mas não ouvi a menor palavra da boca dela. Ela me disse sem palavras. Ela cantou sem canções.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Dois ouvidos, uma boca

"Eu não sei dizer nada por dizer. Então eu escuto. Se você disser tudo que quiser, então eu escuto. Se eu não entender, não vou responder. Então eu escuto. Fala." Não há como não para pra ouvir o que está cantando o Ney Matogrosso, desde os tempos de Secos & Molhados.

Ouço e toco com alguma frequência, não só pela beleza da letra, bem como eu admiro: simples e complexa, mas também pela beleza da melodia - igualmente simples - e, sobretudo, pela limpeza da voz do Ney, que embeleza qualquer música. Ela me leva até minha infância, época em que ouvia minha avó - D. Elvira - me ensinar que Deus nos deu dois ouvidos e uma boca, justamente para ouvirmos mais e falarmos menos.

Foi do que lembrei hoje ao ouvir um colega que está muito sentido por ter de viajar por 4 dias e deixar seu filho em São Paulo com a mãe. Na verdade, não sabia se quem estava sofrendo mais era ele ou o filho. Não se trata de uma situação incomum. Sugeri uma estratégia para que ele e o filho reduzissem a angústia da ausência: ele podia pedir ao filho que adivinhasse o presente que ele compraria ou faria para o garoto em cada dia. Por sua vez, ele - pai - adivinharia o que o filho teria feito para o pai em cada dia.

Alguém ouvia nossa conversa e pediu para interferir. Claro que lhe demos a palavra. De posse da voz, ele nos alertava para o "perigo" de estarmos ensinando o garoto a tratar a ausência com presentes e, por conseguinte, desenvolvendo uma visão capitalista, consumista no garoto... Em plena discordância e quase desesperado, o pai respondeu que aquilo só acontecia - quando muito - uma vez por ano. Então eu me lembrei da música do Ney: "se eu não entender, não vou responder. Então eu escuto".

domingo, 8 de setembro de 2013

De narinas bem abertas

"Vejo vir vindo no vento o cheiro da nova estação. E eu sinto tudo na ferida viva do meu coração". Esses são versos de um cara que eu sempre admirei. Um sujeito cujos discos eu ouço a letra e canto a melodia. Como não respeitar essa aliteração: "Vejo Vir Vindo no Vento"? Como não reconhecer a afirmação de que o coração, mesmo em ferida viva, é capaz de sentir? É Belchior.

Às vezes é preciso estar atento às mudanças de estação. Eu tenho o privilégio de ter nascido em um 22 de setembro, dia que antecede a chegada de uma nova estação - a primavera. Suas cores, suas flores, suas dores. Seus horrores, seus seus louvores, seus horrores. Tudo vem, "when september ends", como canta o Green Day. As sensações são muito boas, mas é preciso narinas bem abertas.

Minha irmã brinca comigo, dizendo que, se alguém quiser me matar não precisará de muito esforço, uma vez que bastará pressionar uma das minhas narinas, a direita. Isso porque a esquerda parece morar no meu rosto mais para compor o quadro facial do que para funcionar propriamente. Tenho um desvio ali que chega a 75% do total. Por isso, seu funcionamento é bem limitado.

Mas eu não quero que isso me impeça de sentir e de poder respirar os ares da primavera que está batendo à porta de todos nós. Virão coisas ruins, com certeza, porque elas fazem parte da vida e não são em si mesmas o problema (o problema é o que fazemos com elas). Virão, por certo, muito mais coisas boas e, sobretudo, pessoas boas, exalando o perfume da vida. Embora eu sinta "tudo na ferida viva do meu coração, vejo vir vindo no vento o cheiro da nova estação".

Em mim mesmo, mais de mim

"Vem e aumenta em mim o único que sou. Me subtrai do que de mim passou" é um verso de Chico César, na música Pétala por Pétala, uma das mais bonitas, a meu ver, que ele já compôs. É muito difícil não enxergar como a clareza do dia, a beleza inquestionável de um verso como "Sua presença me faz rir em dias feitos pra chover". É da mesma música. Não dá pra não ver o exagero extremado que se faz ao trocar a palavra "chorar" por "chover".

O verso que utilizei para abrir esta crônica veio-me hoje quando me deparei com algo que eu sempre imaginei ter... e... não sabia que já tinha. Isso me lembra o texto do Jensen (Gradiva), em que se descreve a incrível paixão de um homem por uma mulher, retratado em uma imagem esculpida. Movido pela paixão, em sonho, este homem vai até as proximidades do Vesúvio, em Pompeia, para encontrar e salvar seu sua amada. Não era lá que ela estava, mas dentro de si mesmo. Este é um dos textos analisados por Freud, no livro O Delírio e seus Sonhos.

É engraçada a situação de ver que o que procuramos está em nós mesmos. Pode parecer frase de livro de autoajuda. É de Sócrates - e sua Maiêutica - que me vem este pensamento: a resposta para as minhas dúvidas estão em mim mesmo. Só que - como muita gente - eu, esse ser(zinho) tão confuso, tão complexo e tão em cinzas, não tenho capacidade de enxergar como gostaria diante das cinzas, da lava e da fumaça do Vesúvio.

Tudo isso me veio em função de uma experiência vivida hoje, ao configurar um tablet. Já estava encantado com a possibilidade de eu escrever em letra cursiva e ele transformar em caracteres digitais o meu texto. Mais encantado fiquei quando descobri que ele também transforma em texto digital qualquer coisa que eu disser, em qualquer língua. Agora, mais aterrador mesmo foi descobrir que essa função estava presente em um telefone que já tenho há mais de um ano. Pois é...aquela fascinação que eu buscava sempre esteve na minha mão. Certamente, subtraiu-se algo do que já havia passado; acrescentou-se algo ao que já era.


sábado, 7 de setembro de 2013

Sombra da sombra

"Quanto não tinha nada, eu quis; quando tudo era ausência, esperei", canta esse moço natural de Catolé do Rocha. Excelente letrista, ótimo músico, de voz e sotaque característicos e inconfundíveis. Gosto demais de ouvir Chico César. Nem poderia ser diferente, pois o cara é autor de um verso como "É só pensar em você, que muda o dia; minha alegria dá pra ver" - versos que me lembram minhas filhas.

Mas há vezes em que não se lembra de ninguém. Ninguém que possa chegar naquele exato momento e dizer: "Vai, meu! Fala. Tô totalmente à disposição pra te ouvir. Fala aí". Ninguém que chega pra chegar, apenas. Que chega ali e só sua presença já representa um alívio, uma divisão do peso. Alguém que possa chegar e provar por A+B que determinados pensamentos são ruins, que determinadas práticas são nocivas...

Certa vez, quando ainda atuava na coordenação de banca de vestibular, achava já ter lido de tudo em possibilidades de erros (ou de desvios, como querem os mais cuidadosos). Engano meu. Um colega, ao constatar que aquilo não tinha fim, saiu-me com esta: "Pois é, Ever, aquilo que parecia ser o fundo final do poço tinha um ralo". Aquela expressão me remeteu direto ao que seria o fundo do fundo e seu profundo infinito.

Hoje, lendo Machado de Assis com meus alunos, fiz questão de ressaltar para eles a riqueza da expressão "sombra da sombra", que se vê em momentos nos quais o que parecia ser a maior das trevas ainda pode enegrecer. Momentos em que a solidão é imensa e que o tempo passa tão lentamente, que o pêndulo do relógio parece bater uma vez a cada século. É justamente nesses momentos que é preciso ter alguém de quem se lembrar, alguém que - só de ser lembrado - muda o dia. Alguém que, mesmo em face da ausência, consegue esperar.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Ajusta medida

"Antes o mundo era pequeno, porque a Terra era grande. Hoje o mundo é grande, porque a Terra é pequena", canta Gilberto Gil, na famosa Parabolicamará. Gil, sem sombra de dúvida, é daqueles artistas cujos comentários, quaisquer que sejam eles, serão pouco. Nessa música, a noção do que é grande e do que é pequeno na vida da gente é algo para se pensar, para se questionar. Não é o fato de serem grandes ou de serem pequenas que faz as coisas terem a importância que têm.

É claro que a gente se alegra quando ganha grandes coisas. Isso produz na gente aquele sentimento de "será?", como quem se pergunta sobre o merecimento daquilo tudo, num misto de reconhecimento com incredulidade. A gente se contenta muito também quando passa por significativos acontecimentos, quando ganha incríveis presentes... e a história se repete.

Tem hora que a gente quer se dar uma coisa dessas, assim, portentosas, gigantescas. Seja para dizer pra nós mesmos alguma coisa boa, seja para nos motivar ainda mais, seja para suprir algum tipo de sei-lá-o-quê que nos amarra o sorriso. Mas o mais curioso não é isso. O mais curioso é que o mesmo sentimento de satisfação se faz presente em presentes menores, em acontecimentos menos significativos, em grandes coisas ganhas.

Olhares discretos de gratidão que escondem discursos inteiros; pequenos sorrisos de Monalisa que escrevem compêndios de satisfação; abraços calorosos e sinceros, tímidos e intensos, que escrevem os mais poéticos textos de homenagem... Essas coisas, sim. Esses acontecimentos, sim. Esses presentes, sim. Todos muito grandiosos. Tão imensos, que não cabem no discurso. Deixam repleta a "parede da memória", que vai ganhando quadros, mosaicos e adereços bem maiores do que qualquer coisa muito grande.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Troca roca oca ca a

"Você sabe o que é ter um amor, meu senhor? Ter loucura por uma mulher? E depois encontrar este amor, meu senhor, nos braços de um tipo qualquer?", cantava há muito muito tempo o gaúcho negro Lupicínio Rodrigues, dono de uma voz afinadíssima e de canções eternizadas, que são até hoje gravadas por muitos intérpretes - como Paulinho da Viola, por exemplo.

Esses versos de Lupicínio Rodrigues me fazem pensar sobre a constante troca que fazemos em nossa vida. Nem estou pensando em trocas naturais, como dente e pele, por exemplo. Penso mesmo em ideias, coisas, pessoas. Tem gente que troca de ideia com uma naturalidade tão grande, que assusta. A mim, pelo menos, ficar trocando de ideia, embora seja natural e até esperado dependendo do contexto, muitas vezes soa falta de compromisso com o que se diz, efetivamente: diz que crê, diz que quer, diz que...

Tem também muita gente que troca de objetos. Lembro aqui, por acaso, da música do Roupa Nova (Sapato Velho), que retrata metaforicamente a troca aparentemente injustificada de um sapato, que ainda serve pra ser calçado. Há que troque por motivo mais justificável: um carro mais velho por um mais novo, por exemplo. Seja para reduzir perdas por desvalorização do automóvel, seja para aplicar melhor um dinheiro, seja simplesmente para experimentar um novo carro.

Mas é assim também com as pessoas. Tem gente que troca de pessoas. Troca de colega, troca de amigo, troca de namorado, troca de marido. E segue trocando como se as pessoas fossem coisas, como se fossem ideias, como se apenas ocupassem funções. Como se fossem algo sem capacidade de reação, gente que não corre risco de sofrer traumas, de se deprimir, de enlouquecer. De se esvaziar. Em qualquer braço. Inclusive "nos braços de um tipo qualquer".


quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Luz sem sombra

"Nosso amor, que eu não esqueço e que teve seu começo numa festa de São João, morre hoje sem foguete, sem retrato e seu bilhete, sem luar e sem violão", cantava o incrivelmente jovem e talentoso Noel Rosa. Para conhecer o cotidiano carioca do início do século passado, taí uma fonte inesgotável. Rico em melodia, riquíssimo em letra. Tanto, que é cantado até hoje.

Essa música é linda, linda. Daquelas que, como volta-e-meia digo aqui, a gente precisa mesmo cantar ouvindo a letra. Acho mesmo tem música que é só pra dançar; tem música que é pra sentir (ou porque lenta, orquestrada e complexa, ou porque simples, de letra [?] rasa e ritmo contagiante); tem música que é pra fazer pensar, porque trata de coisas que são, não de A ou de B, de Fulano e de Sicrano: trata de coisas do ser humano.

É do humano o brilhar e deixar de brilhar. Ou o ver e o não querer mais ver. Sei lá por quê, mas tem gente que ocupa um brilho intenso, tão intenso que chega a irradiar luz a ponto de sombrear quem estiver à volta. Há, porém, gente que se esforça pra ter alguns ralos feixes de luz, mas é de uma luz tão pobre, tão tênue, tão fraca, que sequer produz sombra.

O pior, o pior mesmo, e isso é o mais triste dessa reflexão, é que muitas vezes ocorre uma migração dessas posições, de modo que algumas pessoas, outrora de brilho intenso, passam brilho ralo, daqueles de lâmpada que estão para queimar. Viram luz sem sombra.Tão fraca, que morre e nem é percebida: "sem foguete, sem retrato, sem bilhete, sem luar, sem violão". Sem.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Razões intransigentes

"Todos têm, todos têm suas próprias razões", cantava Renato Russo, com sua verve característica, seu jeito de dizer de modo bastante intensificado, quase gritado, coisas que lhe parecem essenciais. Essa era uma delas. E, devo dizer: concordo bastante.

Embora cantasse (desafinadamente) isso com alguma frequência, só passei dar o devido valor a essa reflexão quando fui forçado, pela vida mesmo, a admitir que razões pessoais são argumentos que se juntam a opiniões de modo tão simbiótico, que não dá pra tentar dissuadir a pessoa. Muitas vezes, não dá nem pra separar o que é uma coisa e o que é outra. A pessoa está tão arraigada, que fica inarredável de sua postura. Ao contra-argumentante, cabe a sensação de "inavançável".

Às vezes, a coisa é no âmbito profissional: por exemplo, aquele funcionário que acha que o chefe pega no pé dele. Jura de pés juntos que tem a maior das certezas de que isso é fato. Ou, ainda, acha que determinado colega quer puxar seu tapete só para ter o prazer de vê-lo cair e, por conseguinte, ocupar seu lugar. A certeza é tão grande, que qualquer ação do outro é sempre lida como mais uma demonstração de maucaratismo do chefe ou do colega.

Assim como ocorre na vida profissional, também ocorre nas relações interpessoais familiares, amorosas e em tantas outras que constituem nossa existência diária. É uma pena, quando as conversas não seguem em razão da intransigência de pensamento, seja de um, seja de outro lado. Uma pena quando as razões  não conseguem se conversar e ceder um pouco. Parecem agir de qualquer forma, menos racionalmente. Mas, que se pode fazer, se "todos têm suas próprias razões"?


domingo, 1 de setembro de 2013

Simples assim

"Mais fácil aprender Japonês em braile", canta Djavan no refrão da música Se (polêmica, até, pelo que normalmente canta esse alagoano, cujo nome nasceu do nome de um barco que aparecera em sonho de sua mãe). Já tive oportunidade de presenciar shows dele e posso dizer, por experiência: ao vivo, ele e a banda mantêm a qualidade do som apresentado nas gravações.

Gosto desse verso, porque remete à dificuldade que algumas pessoas criam em determinadas situações em que um simples 'não' ou um simples 'sim' resolveria com imensa desenvoltura. Entretanto, temos a incrível capacidade de complicar coisas, situações, relações... Tudo seria um pouco mais simples se não houvesse uma série de elementos em seu entorno, os quais acabam se tornando uma só coisa. E bem complicada.

Me agradam demais as pessoas simples, de palavras diretas, de pensamento claro, de vida orientada, de sentimentos resolvidos. Do mesmo modo, me agradam as situações em que o que é é e o que não é não é nem pode vir a ser (como diziam os filósofos pré-socráticos). E como são agradáveis as músicas que ostentam uma beleza gigantesca, construída com poucos acordes!

Hoje, com toda certeza, caminhamos para uma simplificação das coisas,que, na verdade, esconde uma complexificação sem tamanho: um simples objeto pode ter dezenas de funções - um telefone, por exemplo, pode ter tantos aplicativos que fazem com que ele acabe sendo lembrado como tudo...e quase nunca como telefone. Um simples texto pode ter tantas interpretações, que chega a fugir até do que o próprio autor tenha pretendido para ele. É, tudo vai ficando tão complexo, que em pouco tempo vai se tornando mais fácil aprender japonês em braile.

O toque e o ouro

"There is a lady who's sure all that glitters is gold" é um verso extremamente conhecido por aqueles cuja idade gira em torno dos 40, como eu. Trata-se do primeiro verso da música Stairway to heaven, do Led Zeppelin. A referência, neste verso, é a uma senhora que acredita piamente que tudo que brilha é ouro. Por essa razão, ela é capaz de comprar uma escada que a levará para o céu.

Pessoas com pensamentos assim, como o dessa personagem da música acima, deve haver aos montes. Não faço aqui nenhuma referência de natureza religiosa. Bem longe disso, por sinal. Refiro-me, sim, àquelas pessoas que depositam sua esperança em algo que, a despeito da descrença consciente e comprovada de muitos, insistem em acreditar ser ouro tudo que brilha.

Atendi muitos pais hoje. Minha profissão, o cargo que ocupo e as funções que desenvolvo propiciam que seja comum o atendimento às famílias. Mesmo vendo de longe, bem de longe, e com um potentíssimo telescópio as possibilidades de aprovação de seu filho, ainda creem ser esta uma coisa a se realizar no mundo real. Elas compram uma escada para essa esperança. É bonito de se ver esse moto perpétuo que alimenta as energias necessárias a esta fé.

Outros, porém, pelo fato de poder se apoiar em um momento presente mais bem estruturado e com muitos acertos, depositam em seus filhos um futuro que, muitas vezes, não é o futuro que os próprios filhos queriam para si. Assim, muitos pais veem no filho o brilho de um ouro que não é dele (pai), mas do próprio menino. Daí querem se realizar no garoto, querem que o futuro do filho seja o que ele (pai) provavelmente não tenha conseguido. Sim, muitos sobem essa escada. Esquecem-se de que nem tudo que brilha é ouro, e muitas vezes, mesmo sendo ouro, não é um metal que pertença a nós.